terça-feira, 4 de junho de 2024

E O TEJO CONTINUOU A CORRER...

A tia de Vitorino Nunes não durará para sempre e deixar-nos-á, pouco depois de o periquito ter sido esmagado por um funcionário distraído da Companhia das Águas, em má hora chamado para estancar uma inundação na cozinha. Desceu à terra com uma bandeira vermelha sobre o caixão, no centro de um círculo de punhos erguidos, contristados, mas firmes, ainda emocionados por um belo e breve discurso, proferido por um senhor muito curvado, de cabelos nevados sob a boina basca e bengala de mogno. Vitorino emagreceu, o bigode foi-se-lhe tornando todo branco. Um belo dia, juntou-se com Vera Quitério, no velho apartamento das Avenidas, e passou também a dizer «era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto».

Uma ocasião, Jorge Matos encontrou-o e dirigiu-lhe pela quinquagésima vez a pergunta que todos os comunistas de todo o Mundo já se fizeram, no íntimo, pelo menos quatrocentas vezes: «que significa ser comunista, hoje?». Vitorino recolheu-se, sisudo, durante um momento brevíssimo. Depois, abriu um sorriso jovial, de orelha a orelha, e deu-lhe uma palmada sonora nas costas: «É pá, tem calma, pá!», disse.

E o Tejo continuou a correr, e os tempos a não haver meio de os parar.

Mário de Carvalho em Era Bom Que Trocássemos Umas Ideias Sobre o Assunto

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