Obra Escrita
Volume 4
João César Monteiro
Coordenação: Vitor Silva Tavares
Capa: Luís Henriques
Livraria Letra Livre, Lisboa, Outubro de 2021
João de Deus e Joana passeiam à beira da falésia.
João de Deus: E a tua mãe?
Joana: A minha mãe morreu vai para três meses. Somos de Belmonte. Não sei
se conhece.
João De Deus: De passagem.
Joana: Não tínhamos mais ninguém. O meu pai vive em França, mas nunca
quis saber de nós. Não há terra como a nossa. Quando cheguei à gare de
Austerlitz não sabia uma palavra de francês. Queria ir direita ao serviço de
accueil a refugiados de Saint Joseph das
nações, mas ninguém se ralava. Encolhiam os ombros e gronhavam, gronhavam…
João de Deus: Resmungam muito esses parisienses. Parecem baratas tontas.
Joana: Por fim, fui ter onzième arrondissamento. Comi uma sopa e um naco
de pão e, ao fim de três dias lá dei com o paradeiro do meu pai.
João de Deus: O que é que o teu pai faz?
Joana: Trabalhava na Renault. Agora só bebe. Está no chômage. Vive com
outra mulher de quem tem mais três filhos pequeninos, mas também é uma
desgraçada. Só chora. Dormíamos todos a monte… Eu tinha que fazer de cega.
João de Deus: De ceguinha?
Joana: Sabe que quando estava a fazer de cega deixava mesmo de ver? Ficava
com dores horríveis nos olhos até me saltarem as lágrimas. Era de Olhar
fixamente.
João de Deus: Olha, para eu ver.
João de Deus: E não tens vergonha?
Joana: Tenho, mas o que é que hei-de fazer. O mau pai obrigava-me. A isso, e a pior.
João de Deus: A pior. Como?
Joana: Tenho que dizer’
João de Deus: Já tenho idade para
ouvir certas coisas…
Joana: A ir com os homens. Se me
recusasse, moía-me com pancada.
João de Deus: A moral dos cegos é
diferente da nossa.
Joana: O senhor é um santo mas já
lhe dei muita maçada. Coitadinho, até podia ter morrido enregelado por minha
causa.
João de Deus: Enregelado não direi,
mas meio da digestão de umas sardinhas de conserva podia dar-me uma congestão.
Íamos os dois.
Joana: Ainda por cima, não faço falta
a ninguém.
João de Deus: Já não estás só no
mundo. Vou-me ausentar por uns dias. É mais fácil um camelo passar pelo buraco
de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Sou um homem rico, isto é, privado do privado assento etéreo. Ando cá por baixo a refazer a minha
vidinha. Tenho uns Fazereres no Cambodja.
Joana: O senhor é a minha luz.
João de Deus: Sou fraca candeia.
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