terça-feira, 18 de junho de 2024

OLHAR AS CAPAS


 Obra Escrita

Volume 4

João César Monteiro

Coordenação: Vitor Silva Tavares
Capa: Luís Henriques

Livraria Letra Livre, Lisboa, Outubro de 2021

João de Deus e Joana passeiam à beira da falésia.

João de Deus: E a tua mãe?

Joana: A minha mãe morreu vai para três meses. Somos de Belmonte. Não sei se conhece.

João De Deus: De passagem.

Joana: Não tínhamos mais ninguém. O meu pai vive em França, mas nunca quis saber de nós. Não há terra como a nossa. Quando cheguei à gare de Austerlitz não sabia uma palavra de francês. Queria ir direita ao serviço de accueil a refugiados  de Saint Joseph das nações, mas ninguém se ralava. Encolhiam os ombros e gronhavam, gronhavam…

João de Deus: Resmungam muito esses parisienses. Parecem baratas tontas.

Joana: Por fim, fui ter onzième arrondissamento. Comi uma sopa e um naco de pão e, ao fim de três dias lá dei com o paradeiro do meu pai.

João de Deus: O que é que o teu pai faz?

Joana: Trabalhava na Renault. Agora só bebe. Está no chômage. Vive com outra mulher de quem tem mais três filhos pequeninos, mas também é uma desgraçada. Só chora. Dormíamos todos a monte… Eu tinha que fazer de cega.

João de Deus: De ceguinha?

Joana: Sabe que quando estava a fazer de cega deixava mesmo de ver? Ficava com dores horríveis nos olhos até me saltarem as lágrimas. Era de Olhar fixamente.

João de Deus: Olha, para eu ver.

João de Deus: E não tens vergonha?

Joana: Tenho, mas o que é que hei-de fazer. O mau pai obrigava-me. A isso, e a pior.

João de Deus: A pior. Como?

Joana: Tenho que dizer’

João de Deus: Já tenho idade para ouvir certas coisas…

Joana: A ir com os homens. Se me recusasse, moía-me com pancada.

João de Deus: A moral dos cegos é diferente da nossa.

Joana: O senhor é um santo mas já lhe dei muita maçada. Coitadinho, até podia ter morrido enregelado por minha causa.

João de Deus: Enregelado não direi, mas meio da digestão de umas sardinhas de conserva podia dar-me uma congestão. Íamos os dois.

Joana: Ainda por cima, não faço falta a ninguém.

João de Deus: Já não estás só no mundo. Vou-me ausentar por uns dias. É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus. Sou um homem rico, isto é, privado do privado assento etéreo. Ando cá por baixo a refazer a minha vidinha. Tenho uns Fazereres no Cambodja.

Joana: O senhor é a minha luz.

João de Deus: Sou fraca candeia.

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