Em quatro deliciosas crónicas no Público, republicadas na Pastelaria, Ana Cristina Leonardo, apanha boleia nos 50 anos do 25 de Abril e traz as suas memórias.
Imperdíveis!
Uma
já Cristina Leonardo contara antes do aniversário
Abrilico de antes de Abril, e tem o seu pai como personagem:
Ana
Cristina Leonardo nasceu em Olhão e conta que o pai, sem simpatia alguma pelos
americanos, após o fim da guerra estava às voltas com discussões em que já se
discutia que um automóvel era coisa boa para os portugueses.
O
pai para a assembleia:
«Calma,
primeiro uma bicicleta a pedais para cada português. Depois os Cadillacs.»
O
que se segue é parte da «Abril, Memórias Mil (II)», publicada no dia 12 de
Abril:
«…anos antes e mais a
sul, um homem de meia-idade pedalava cautelosamente na noite. A tarefa de que
fora incumbido consistia em levar uma braçada de Avante(s) a local previamente definido. Montado na sua bicicleta
– meio de locomoção que alguém numa reunião local da Oposição, não havia muito,
reivindicara sensatamente para todos os cidadãos, contrariando os fantasistas
do american dream que não
faziam a coisa por menos de um Cadillac: “Os Cadillac logo se vê. Para já, uma
bicicleta a pedais para cada português!” – cruzava as vielas mouras combinando
a audição de um morcego com o equilíbrio de um gato.
Tudo dormia. As ruas estavam desertas. O homem olha na direcção das açoteias
com a mesma ansiedade com que se imagina um recruta tentando antecipar-se a um
franco-atirador. O silêncio apenas interrompido pelo chiar arrastado da
corrente gasta (algo semelhante acontece no Fantasma de Canterville de Oscar Wilde, mas nem
Wilde nem o fantasma entram nesta crónica), e eis que o som cavo de passos é
detectado pelo homem-morcego. São passos apressados, como se alguém tentasse
correr, não correndo. Aproximam-se, calam-se ao abrandar da bicicleta. Se
pudéssemos suspender o movimento no tempo, obteríamos a imagem parada de um
pide, uma perna levantada no ar, o corpo inclinado para a frente sobre o único
pé que toca o empedrado do lancil. Usa chapéu.
O homem da bicicleta sabe que nada mais lhe resta senão desfazer-se da carga. A
poucos metros, o muro do cemitério. Pedala furiosamente. Transforma-se num
homem-gato, num funambulista que, sem afrouxar o ritmo, lança a braçada de Avante(s) sobre o muro alto e caiado que delimita o
território dos que descansam.
O pide que deixámos para trás, o movimento imobilizado no tempo, falha por um
desalinho da viela moura o gesto do homem-gato. Há-de persegui-lo inutilmente
até ao porto para onde ele se dirige agora, local que começa a animar-se com a
chegada dos primeiros barcos de pesca. Cheira a maresia em Olhão.
E sobre os Avante(s) jogados para o cemitério
que na manhã seguinte esvoaçavam sobre as campas como querubins brincalhões,
havia de comentar o coveiro, em voz baixa, naturalmente, na sua habitual
passagem pela barbearia: “Atã má que jête, mósse? Os desfalecides é que vão ler
os Avante? Aquilo foi obra do
demóine ou d’algum desinfeliz que ia bem encalitrado!”»
Legenda: imagem de Mihai Criste.
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