domingo, 30 de junho de 2024

OS DIAS VISTOS DO CAFÉ DO MONTE


 Em quatro deliciosas crónicas no Público, republicadas na Pastelaria, Ana Cristina Leonardo, apanha boleia nos 50 anos do 25 de Abril e traz as suas memórias.

Imperdíveis!

Uma já  Cristina Leonardo contara antes do aniversário Abrilico de antes de Abril, e tem o seu pai como personagem:

Ana Cristina Leonardo nasceu em Olhão e conta que o pai, sem simpatia alguma pelos americanos, após o fim da guerra estava às voltas com discussões em que já se discutia que um automóvel era coisa boa para os portugueses.

O pai para a assembleia:

«Calma, primeiro uma bicicleta a pedais para cada português. Depois os Cadillacs.»

O que se segue é parte da «Abril, Memórias Mil (II)», publicada no dia 12 de Abril:

«…anos antes e mais a sul, um homem de meia-idade pedalava cautelosamente na noite. A tarefa de que fora incumbido consistia em levar uma braçada de Avante(s) a local previamente definido. Montado na sua bicicleta – meio de locomoção que alguém numa reunião local da Oposição, não havia muito, reivindicara sensatamente para todos os cidadãos, contrariando os fantasistas do american dream que não faziam a coisa por menos de um Cadillac: “Os Cadillac logo se vê. Para já, uma bicicleta a pedais para cada português!” – cruzava as vielas mouras combinando a audição de um morcego com o equilíbrio de um gato.


Tudo dormia. As ruas estavam desertas. O homem olha na direcção das açoteias com a mesma ansiedade com que se imagina um recruta tentando antecipar-se a um franco-atirador. O silêncio apenas interrompido pelo chiar arrastado da corrente gasta (algo semelhante acontece no
Fantasma de Canterville de Oscar Wilde, mas nem Wilde nem o fantasma entram nesta crónica), e eis que o som cavo de passos é detectado pelo homem-morcego. São passos apressados, como se alguém tentasse correr, não correndo. Aproximam-se, calam-se ao abrandar da bicicleta. Se pudéssemos suspender o movimento no tempo, obteríamos a imagem parada de um pide, uma perna levantada no ar, o corpo inclinado para a frente sobre o único pé que toca o empedrado do lancil. Usa chapéu.

O homem da bicicleta sabe que nada mais lhe resta senão desfazer-se da carga. A poucos metros, o muro do cemitério. Pedala furiosamente. Transforma-se num homem-gato, num funambulista que, sem afrouxar o ritmo, lança a braçada de
Avante(s) sobre o muro alto e caiado que delimita o território dos que descansam.

O pide que deixámos para trás, o movimento imobilizado no tempo, falha por um desalinho da viela moura o gesto do homem-gato. Há-de persegui-lo inutilmente até ao porto para onde ele se dirige agora, local que começa a animar-se com a chegada dos primeiros barcos de pesca. Cheira a maresia em Olhão.

E sobre os
Avante(s) jogados para o cemitério que na manhã seguinte esvoaçavam sobre as campas como querubins brincalhões, havia de comentar o coveiro, em voz baixa, naturalmente, na sua habitual passagem pela barbearia: “Atã má que jête, mósse? Os desfalecides é que vão ler os Avante? Aquilo foi obra do demóine ou d’algum desinfeliz que ia bem encalitrado!”»



Legenda: imagem de Mihai Criste.

Sem comentários: