Pormenor da capa de Afonso Cruz para o JL
– nº 1400 da edição de 29 de Maio a 11 de Junho de 2024 - em que são
evocados os 500 anos do nascimento de Luís de Camões.
Larga colaboração em que se destaca o
artigo de Lucas laurentino, professor na Universal Federal do Rio de Janeiro,
quando destaca o nome de Jorge de Sema como o mais profundo e competente
estudioso de Camões:
«O conjunto das obras de Jorge de Sena
dedicadas a Luís de Camões desnorteia e impressiona o leitor. Talvez o melhor
adjectivo para descrevê-lo seja “monumental”. Já houve quem contasse nada menos
do que 2.158 páginas senianas sobre o poeta, entre livros e coletâneas de
ensaios. Haverá outro pesquisador que tenha lido Camões com maior minúcia? Sena
parece examinar os poemas camonianos num microscópio, disposto a investigar
cada detalhe de casa verso.»
Recorde-se que Jorge de Sena, no ano de
1977, foi o convidado para proferir o discurso das Comemorações do
Dia de Portugal e de Camões. E nunca estas comemorações voltaram a ter um
discurso tão inteligente, tão culto, tão livre, tão repleto de sentimento.
Esse discurso faz parte do livro Rever
Portugal - Textos Políticos e Afins, que é o tomo V das Obras
Completas de Jorge de Sena editadas pela Guimarães.
Importa agora registar que a
editora Guerra & Paz de Manuel F. Fonseca tem vindo a publicar a
obra de Jorge de Sena:
«Ah, o 10 de Junho! Às 17:00, numa
sessão que vai ser universal e nada paroquial, Margarida Braga Neves e António
Carlos Cortez falam de Camões-Jorge de Sena, e aí se estreará o talvez
mais belo dos 5 livros que comemoram os nossos 500 anos de Camões vistos
por Sena. Apoiado pela Gulbenkian, o livro chama-se Babel
e Sião: está lá, de Camões, a redondilha Sobre os rios que vão,
em papel negro escrita a prata. E está lá o conto Super Flumina Babylonis,
no primeiro encontro, no mesmo livro,
de Sena e Camões enquanto poetas e criadores. Obrigado,
Isabel de Sena, por ter abençoado este encontro comovente.»
Copia-se a abertura do discurso de Jorge
de Sena na cidade da Guarda:
É para mim uma honra insigne o ter sido
oficialmente convidado pela comissão organizadora das comemorações de Camões em
1975, e do dedicar-se do Dia de Camões à recordação das comunidades portuguesas
ou de origem portuguesa dispersas pelo mundo, para aqui falar na minha dupla
qualidade de estudioso de Camões, e de residente no estrangeiro, que eu sou.
Com efeito, em 1978, cumprem-se trinta anos sobre a primeira vez que, de
público me ocupei de Camões, iniciando o que, sem vaidade me permito dizê-lo, tem
sido uma contínua campanha para dar a Portugal um Camões autêntico e
inteiramente diferente do que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões
dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário, em tudo um homem
do nosso tempo, que poderia juntar-se ao espírito da Revolução de Abril de
1974, e ao mesmo tempo sofrer em si mesmo as angústias e as dúvidas do homem
moderno que não obedece a nada nem a ninguém senão à sua própria consciência.
Esse meu Camões foi longamente o riso dos eruditos e dos doutos, de qualquer
cor ou feitio; foi a indignação do nacionalismo fascista, dentro e fora das
universidades, dentro e fora de Portugal; foi a aflição inquieta do catolicismo
estreito e tradicional, dentro e fora de Portugal; e foi a desconfiança suspeitosa
de muita gente de esquerda, a quem eu oferecia um Camões que deveria ser o
deles, quando eles preferiam atacar ou desculpar o Camões dos outros. Foi e
ainda é, e será. Porque, sendo Camões o maior escritor da nossa língua que é
uma das seis grandes línguas do mundo e um dos maiores poetas que esse mundo
alguma vez produziu (ainda que esse mundo, na sua maioria, mesmo no Ocidente, o
não saiba), ele é uma pedra de toque para portugueses, e porque tentar vê-lo
como ele foi e não como as pessoas quiserem ou querem que ele seja, é um
escândalo. São essa pedra de toque e esse escândalo o que, neste momento
solene, a três anos de distância do 4o. centenário da morte do maior português
de todos os tempos, vos trago aqui, certo e seguro de que ele mesmo assim o
desejaria. E, antes de mais, peço que, nas minhas palavras anteriores ou nas
minhas palavras seguintes, ninguém veja ataques ou referências pessoais que não
há; tenhamos todos, tenham todos a humildade de reconhecer que, quando se fala
de Camões e de Portugal, não podemos pensar em mais ninguém.
Quanto a ser um residente no estrangeiro, vai para dezoito anos que o sou, o
que, curiosamente, é mais ou menos o tempo que o próprio Camões viveu fora de
Portugal, desde que dele partiu para as Índias [em 1553, até que
regressou,]* em 1570, tão pobre como partira, mas com Os
Lusíadas no bolso ou na bagagem, para publicá-los. Eu nem estou a
regressar, nem tenho Lusíadas nenhuns. Mas não sou exactamente um
emigrante no estrangeiro, ainda que neste viva, e com os emigrantes me possa
identificar – aqueles emigrantes que vi e tenho visto de perto, primeiro no
Brasil e depois nos Estados Unidos, e também pelo mais largo mundo que tenho
percorrido, e que, com a sua laboriosidade, a sua dignidade, a sua humanidade
convivente, são em toda a parte, míseros e mesquinhos, ou ascendidos e
triunfantes, muitas vezes, os embaixadores que Portugal não envia, ou os
representantes da cultura que Portugal não exporta. Por dezassete anos,
recordemos, Camões foi apenas um deles, quando ninguém sabia ou podia ainda
saber o génio que ele era. Reatando: eu não sou exactamente um emigrante no
estrangeiro, porque, quando saí de Portugal, tinha vinte anos de escritor
publicado, e desde então a maior parte da minha obra, ou grande parte dela, foi
escrita para Portugal ou em Portugal publicada. Seja o que seja, continuo a ser
o que era, quando me exilei muito a tempo naqueles idos negros e tristes de
1959: um escritor português que vive no estrangeiro e que mantém um permanente
contacto com Portugal, até por obrigação profissional: catedrático de
Literatura Portuguesa, que é um dos meus títulos e deveres, não tenho outro
remédio senão estar a par do que se publica. Por outro lado, a minha fidelidade
a Portugal – e fidelidade é uma das palavras-chave da minha pessoa e
da minha obra, como liberdade é outra – nunca me permitiu livrar-me
de partilhar (acrescentadas da dor da distância) as dores e as alegrias, os
desalentos e as esperanças de Portugal. Permitam-me ainda um esclarecimento. Na
melhor das intenções, vária imprensa anunciou ou referiu que eu falaria aqui
como representante dos luso-americanos. Se alguém pensou que eu tal faria, mais
que num plano meramente simbólico de partilhar com eles o viver nos Estados
Unidos, enganou-se redondamente. Primeiro que tudo, eu não sou um
luso-americano: esta palavra significa não o português que vive na
América, mas ou o que adquiriu a cidadania americana, ou o que descende de
portugueses e já nasceu americano: luso-americanas são duas filhas minhas, por
naturalização, e um neto meu que o é nato, como brasileiro por naturalização eu
sou, e dois filhos meus o são natos, enquanto minha mulher e outros cinco
filhos mantiveram a nacionalidade portuguesa. E, em segundo lugar, que é o
primeiro de todos, eu não recebi dos luso-americanos nenhum mandato eleitoral
para falar em nome deles, embora esteja certo de que mo teriam dado, se a eles
o tivesse pedido, por saberem que os respeito e estimo, sem distinção de credo
ou cor (porque há luso-americanos de cor, idos de Cabo Verde para lá, por
exemplo). Democrata como sou, eu não falo em nome de ninguém, sem ter recebido
um expresso mandato para tal. Eu fui convidado por Lisboa e de Lisboa, o que é
uma honra, mas Lisboa não tem o direito de nomear representantes de
nada ou de ninguém. Esse vício centralista da nossa tradição administrativa –
um dos vícios que Camões denunciou e castigou nos seus Lusíadas –
deve ser eliminado e banido dos costumes portugueses, sem perda da autoridade
central que deve manter unido um dos povos mais anárquicos do mundo e menos
realistas quando de política se trata. Porque os portugueses são de um
individualismo mórbido e infantil de meninos que nunca se libertaram do peso da
mãezinha; e por isso disfarçam a sua insegurança adulta com a máscara da paixão
cega, da obediência partidária não menos cega, ou do cinismo mais oportunista,
quando se vêem confrontados, como é o caso desde Abril de 1974, com a
experiência da liberdade. Isto não sucedeu só agora, e não é senão repetição de
outros momentos da nossa história sempre repartida entre o anseio de uma
liberdade que ultrapassa os limites da liberdade possível (ou sejam as
liberdades dos outros, tão respeitáveis como a de cada um) e o desejo de ter-se
um pai transcendente que nos livre de tomar decisões ou de assumir
responsabilidades, seja ele um homem, um partido, ou D. Sebastião. Também dos
limites da ordem social e dos deveres do homem para consigo mesmo e a sociedade
de que faz parte foi Camões um mestre. Assim, aqui, no âmbito de celebrações que
são camoneanas e do Portugal disperso pelo mundo desde que o país existe e
desde que, no estrangeiro, comunidades portuguesas ou de lusa origem se
formaram ou mantiveram, eu não represento luso-americanos, e não falo em nome
deles ou de ninguém no largo mundo. Aceito falar, como eu mesmo, da importância
e do significado de Camões hoje, e da necessidade de ter presente ao espírito
esta ideia tão simples: um país não é só a terra com que se identifica e a
gente que vive nela e nasce nela, porque um país é isso mais a irradiação
secular da humanidade que exportou.»
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