Na obra de José
Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia é um dos meus livros preferidos.
Gostei logo à
primeira leitura.
Joaquim Vicente
no seu Rota de Vida, aborda com algum pormenor o livro.
Conta que Nelson
de Matos terá dito que o Manual tinha vendido três exemplares, um dos quais
comprado por Mário Soares, que quando o adquiriu na Livraria Moraes, terá dito: «Manual de
Pintura e Caligrafia? Mas o que é que o Saramago sabe disto?»
Mais uma
história mal contada. Eu comprei o livro. E ao tempo, sei de mais pessoas que
compraram.
Passemos à
frente.
«É inegável a característica autobiográfica de todo o
livro. Foi o que logo sentiu Nelson de Matos: «Era normal que a personagem do
livro correspondesse ao escritor que estava a começar. No qual ele não confiava
ainda.» «É talvez o meu livro mais autobiográfico», reconhecerá o próprio Saramago.
(…)
Nelson de Matos terá ficado longe de se sentir
eufórico com o texto, mas, não obstante, optou por arriscar: «Lembro-me de que
não gostei do livro, não me entusiasmou. Comentei pouco o livro com ele, mas
publiquei. O Saramago estava próximo, e o livro não era tão mau assim. Foi um
desastre editorial, comercialmente, não se vendeu. A escrita dele sempre foi
muito rebuscada, muito barroca.».
A obra passou despercebida do público, para grande
frustração do autor, pelo que testemunhou Mário de Carvalho: «O Manual de Pintura e Caligrafia foi uma
desilusão para ele, Foi um livro em que o Saramago apostou muito, Recordo-me da
mágoa com que ele viu que o livro não estava a ser bem acolhido.»
Contudo, o regresso de José Saramago á ficção, três
décadas após Terra do Pecado, teve os seus defensores. Na Seara Nova, Ana Hatherly, num artigo
sobre o Manual de Pintura e Caligrafia, constituindo acima de tudo uma reflexão
acerca das possibilidades do romance contemporâneo, com citações de Louis
Althusser, Paul Valéry, Claude Levi-Strauss, Émile Benveniste, William Blake,
Maurice Blanchor, Kafka, Julia Kristeva, Walter Benjamim e Jacinto do Prado Coelho,
deixava entrever a importância atribuída ao livro, não propriamente por uma
opinião crítica, mas pelo espaço que lhe dedicava – três densas páginas. E no
balanço literário nacional do ano seguinte, que faria para a Colóquio/Letras,
Eduardo Prado Coelho coloca o volume de Saramago no seio de um «desfiar imenso
de obras interessantes a vários títulos», referindo-se a Manual de Pintura
e Caligrafia como a «a estreia (aparente) dum ficcionista» (se bem que as
obras que destacasse para esse período, «dois livros excecionais», fossem Casas
Pardas, de Maria Velho da Costa, e Directa, de Nuno Bragança). Em
contrapartida, na mesma revista, Maria Alzira Seixo exporá mais tarde reservas
por observar na obra «uma serenidade de relato que não cumpre a tensão temática
proposta» e «uma efabulação que não acompanha os meandros intricados da
simbólica utilizada».
Já José Manuel Mendes inserirá o livro do amigo na
coerência de um percurso literário: «Se lermos com atenção os dois livros que
ele escreveu antes, Terra do Pecado e Claraboia (sobretudo Claraboia), entendemos que está ali
integralmente um homem capaz de fazer uma obra de grande envergadura. Depois, a
tarimba do jornal e particularmente da crónica, mais do que os artigos de
opinião, servem-lhe para experimentação de mecanismos de escrita e de
procedimentos textuais de vária ordem. E quando um dia parte para a escrita do Manual
de Pintura e Caligrafia, livro que valorizo bastante, ele está maduro para
fazer esse tipo de experiência e levá-la a bom porto, a um bom resultado. O
romance é um bom romance.»
Também Carlos Reis acha que aqui se anuncia mais do
que à primeira leitura parece: «No Manual
de Pintura e Caligrafia, que é um romance subvalorizado – passou despercebido
-, está muito do projecto de Saramago, de transformar o artista de pintor em
escritor e de fazer com que o escritor olhe para a realidade histórica. No
fundo é uma reflexão muito metaficcional, metaliterária - o pensar a escrita,
pensar a História, pensar a ficção. Isso está tudo inscrito ali.»
Baptista-Bastos lamentará até que o autor não tenha aprofundado essa via: «Acho
que o Manuel de Pintura e Caligrafia é um grande livro, que devia ser um
caminho que ele devia ter encetado. É a minha opinião. Porque é uma coisa gira
sob o ponto de vista das interrogações que um artista tem para fazer as coisas.
É um bocado parecido com Os Sonâmbulos, do Herman Broch, é um bocado
umas perplexidades do autor.»
Saramaguiano que
já era, encantou-me de imediato, e sempre entendi Manual de Pintura e
Caligrafia como um livro para ser vigilantemente pensado.
Lido de um só fôlego, a ele voltei para lentamente o apreciar, tal como se faz com uma velha aguardente.
Lido de um só fôlego, a ele voltei para lentamente o apreciar, tal como se faz com uma velha aguardente.
6 comentários:
Em Julho 2015 comprei, num alfarrabista, por € 3,50 este livro, numa edição de 1999 do Círculo de Leitores e foi dos únicos que, do Saramago, não li.
Eu, que, considero Saramago o melhor escritor português depois de Camões (dou ao Camões o benefício da dúvida mas apenas por motivos óbvios) nunca li "Manual de Pintura e Caligrafia" porque, cá no fundo, considerava-o menos bom dos livros do Saramago.
Feliz do leitor que, por uma qualquer circunstância, elege um autor e se decide a comprar e a ler todos os seus livros. Aconteceu-me com José Saramago. Não o conhecia de nome, nem de qualquer leitura, mas numa tarde de chuva, na Livraria Portugal, folheei «Os Poemas Possíveis», gostei e fiquei à espera do que viria a acontecer.
Feliz e grata espera!
Mas também compro livros pelas capas, pelos começos, pelos finais. Por vezes, espalho.me ao comprido mas,se em Dezembro de 1976, José Saramago já não pertencesse, ao meu panteão, teria comprado «Manual de Pintura e Caligrafia» pelo seu começo.
«Não quero pensar, por agora, naquilo que farei se mesmo esta escrita falhar, se daí para diante, as telas brancas e as folhas brancas forem para mim um mundo orbitado a milhões de anos-luz onde não poderei traçar o menor sinal. Se, em suma, for acto de desonestidade o simples gesto de agarrar num pincel ou numa caneta, se, uma vez mais em suma (a primeira vez não chegou a ser), a mim mesmo dever recusar o direito de comunicar ou comunicar-me, porque terei tentado e falhado e não haverá mais oportunidades.»
Caro Seve, não é um livro fácil mas, por experiência, sabemos que todos os começos são difíceis.
Por um destes dias de Verão, um Verão um tanto ou quanto ranhoso, tente a abordagem e, certamente, voltaremos a falar.
Não quero deixar de dizer que isto são meras opiniões pessoais de vulgar leitor, nunca um qualquer «magíster dixit» para o qual não tenho feitio nem habilidade, nem capacidade.
Caro Sammy o meu amigo, que deve saber mais de livros a dormir que eu acordado, sabe tão bem ou melhor do que eu que os bons livros não são fáceis bem pelo contrário, eles têem de nos obrigar a pensar e pensar dá muito muito trabalho.
Por exemplo, não sei se já o referi aqui, da primeira vez que peguei no "Memorial do Convento" larguei-o à página 50, meses depois li-o de seguida numa só noite.
Não sei se é um livro fácil ou difícil sei que foi simplesmente a mais bela história de amor que li até hoje, sim, repito, a mais bela história de amor!
Repito e não me canso SARAMAGO é o melhor escritor portugués de sempre (depois de Camões, mas refiro Camões, apenas para não ferir susceptibilidades).
Caro Seve, perceber muito de livros, é coisa que não sei o que seja. Guardo um velho ensinamento do meu avô paterno – ser sempre aprendiz de tudo, oficial de nada. E sei que quase tudo o que de bom guardo da vida, aconteceu-me através dos livros.
Tornei-me um viciado e, normalmente o saber de livros não surge por esta via.
Talvez como Sartre em As Palavras: «Comecei a minha vida como a acabarei certamente: no meio dos livros.».
Digo aos meus netos, tentando perdidamente levá-los a ler, que se eles soubessem as coisas que se aprendem com a leitura e conto-lhes de Emilio Salgari, comigo foi onde tudo começou, mas sinto-me no meio de uma batalha perdida… Hélas!...
O «Memorial do Convento» é mesmo um livro admirável. Um hino ao amor e ao trabalho, o trabalho daquela gente que construiu aquele convento.
Quando, no meu velho 5º ano de liceu, andei às voltas com esse crime do ensino salazarento de dividir orações, deparei-me com um poeta extraordinário. Em casa do meu pai existiam alguns livros mas nenhum de poesia. Aos poucos, num trabalho moroso, o dinheiro não abundava, fui conhecendo os nossos poetas. Foi pela poesia que entrei nos escritores neo-realistas, ainda hoje tão, injustamente, deturpados e pontapeados. Ensinaram-me então que a melhor maneira de aceder ao Luís de Camões, para além de «Os Lusíadas» era através da sua lírica. Pena que de Camões nos lembremos apenas quando então havia o Dia da Raça e hoje o Dia das Comunidades. E só o nomeiam, porque falar desse extraordinário escritor, não querem porque nem sequer sabem. Jorge de Sena tem notáveis trabalhos ensaisticos sobre Luís de Camões e eu, por isso e por aquilo, lamentavelmente ainda não os li.
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