Quando alguém nos é apresentado como sendo possuidor
de determinados dons e qualidades, nós não podemos deixar de relacionar esses
predicados com o reflexo que eles
terão na felicidade comum. E ocorre-nos se podemos realmente participar da boa
sorte que essa pessoa sabe atrair com o uso dos seus talentos. Mas talento é
uma coisa, e felicidade é outra. Felicidade é o círculo mágico dentro do qual
nós desejamos encontrarmo-nos. O que nem sempre acontece.
Exemplo de uma pessoa feliz é o seguinte:
um indivíduo acorda no meio da noite e vê o quarto ligeiramente iluminado. Não
sabe se é madrugada ou se o candeeiro da rua projecta o clarão nos vidros da
janela. Pergunta para si própria: «Que horas serão?» Nesse preciso momento, o
relógio da torre bate duas, três ou seis badaladas. A pessoa fica imediatamente
elucidada e dissipa-se o seu problema. Devo dizer que esta hipótese é muito
rara.
Outro caso é o de alguém que igualmente
acorda fazendo ainda escuro, e pretende saber se a noite vai ou não adiantada.
Então o relógio da torre bate uma badalada. A pessoa fica um bocado perplexa.
Espera acordada meia hora; o relógio faz ouvir três, cinco ou seis badaladas. Aquela
pessoa fica esclarecida. Esta é uma criatura medianamente feliz, pois não teve
de esperar muito para que as suas dúvidas se dissipassem.
No terceiro caso, acontece isto: a
pessoa, que acordou sobressaltada e sem a noção do tempo, ouve uma badalada.
Não sabe se é meia-noite e meia hora, se é uma hora, se é hora e meia da manhã.
Espera, e ouve ainda uma badalada. Espera mais... e adormece. Eu ia dizer «e
morre», mas não; adormece, e é tudo. Não chega a saber a quantas anda. Esta é
uma pessoa sem sorte.
Em qualquer dos casos, o que acontece
nada tem que ver com as qualidades de cada um. Mas uma coisa é certa: todos nos
encontramos no relógio da torre.
Agustina
Bessa-Luís em Caderno de Significados
Sem comentários:
Enviar um comentário