“No cinema, a inocência vê-se.
Eu vi-a numa miúda insolente que partiu ao meio o duro Humphrey Bogart, com olhares oblíquos, respostas velozes e a promessa de vir a correr se ele aprendesse a assobiar. A miúda, descobriu-a o realizador Howard Hawks e ela não tinha sequer 20 anos. Hawks tinha quase 50 e as melhores e as piores intenções. Dormir com ela conta para qualquer das duas hipóteses. Ela era Lauren Bacall.
Bogart, 45 anos, foi mais rápido. Mal a viu, Bogart cercou-a sabendo já que, no fim, seria ele a render-se. O filme chama-se “To Have and Have Not”, uma adaptação de Hemingway em que colaborou Faulkner. É um dos mais felizes encontros de amantes da história do cinema. Atrevo-me: de todas as histórias que em histórias já se contaram. Em cada imagem do filme, nos olhares de Bacall e Bogart, nos gestos, na voz, a história do filme é a história deles. O pano de fundo é uma intriga da II Guerra que mal disfarça a forma como um ao outro se provam e saboreiam. Tudo o que vemos no filme foi verdade na vida: atacaram-se com uma insolente apaixonada gentileza.
Uma noite, durante as filmagens, Bogart telefonou a Bacall. Eram 3 da manhã e estava à espera dela numa rua de Los Angeles, na esquina do Beverly Wilshire Hotel. Juntou os lábios, soprou e saiu-lhe um assobio. Bacall tinha vindo de Nova Iorque com a mãe. A mãe opôs-se, braços em cruz, mas o assobio foi irresistível.
Hawks conta que Bacall era virgem. Nessa noite, talvez na seguinte, deixou de ser. Não perdeu nada. Não me lembro de nenhum filme em que, cena a cena, o rosto de uma mulher tanto ganhe em alegria, confiança, entrega e soberania. E a voz rouca a deixar Bogart a seus pés, no filme e para o resto da vida. Até que o whisky, uma tonelada de cigarros e um cancro na garganta, matando um, os separou aos dois. Pouco importa, há um filme que guarda para a eternidade a inocência dos dois”
Manuel S. Fonseca no “Expresso”, 22 de Abril.
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