Mais uma espreitadela à correspondência de José Saramago e José Rodrigues Miguéis.
Em carta datada de 22 de Março de 1960, José Saramago acusa a recepção dos primeiros capítulos de A Escola do Paraíso:
Vou ler a Escola desde o princípio, regaladamente, com vagares de sibarita. Sem intenções de crítico, que o não sou, mas com os olhos que puder arranjar, lerei – e direi o que me parecer: tome a minha futura apreciação pelo que vale. Quanto ao Mário Dionísio, nós não temos de estar de acordo, uma vez que o nosso desacordo seria estulto e um pouco impertinente. O meu caro amigo é que dirá se efectivamente deseja que outros leiam o seu trabalho: de antemão concordamos com o seu desejo.
Deliciosa a parte final da carta:
Uma coisa continua a ser verdadeira: para best-seller só lhe falta que Portugal tenha 80 milhões de habitantes, em vez dos escassos 8 milhões, com 50% de analfabetos e 45% de leitores de letras gordas…
Numa carta de Nova Iorque datada de 12 de Maio de 1960, Migueis lamenta-se dos elevados custos das despesas de correio que tem de desembolsar para mandar livros e cópias corrigidas para a Editorial Cor. O lamento mostra, uma vez mais, as muitas e terríveis dificuldades económicas que sempre teve de enfrentar durante o seu exílio americano.
Acabo de botar no Correio, com destino ao reino di-a (sic) COR, as últimas 100 folhas (épico) do Paraíso: boa viagem e good luck, como se diz deste lado do rio. O pacote vai por via marítima, por economia – mesmo assim foram mais de 30 esc. Por avião seria uma barbaridade.
Esta carta tem um outro aspecto curioso: Miguéis conta que o capítulo O Pântano Fermenta da Escola do Paraíso sofreu censura familiar.
O penúltimo episódio (Pântano) acaba com uma cena para-pornográfica (?) que me fez suar: estava uma maravilha, mas a minha mulher protestou e foi um trabalhão para reduzir a isso. Mesmo assim talvez não possa passar. Quero a sua opinião desassombrada, no fim. Isto é um romance panorâmico, epocal, diferente, sem enredo nem intriga, cuja acção está no crescimento do pequeno Gabriel, que é o fulcro de tudo. Não sei se há outro parecido na nossa terra. Estou a terminar a Nota Explicativa («entrevista comigo mesmo») que talvez não junte ao livro, mas reserve para ser distribuída com as ofertas aos Proficientes Zoilos.
Legenda: José Rodrigues Miguéis, com a mulher Camila,, em Central Park no ano de 1939.
Fotografia tirada do catálogo da exposição comemorativa do centenário do seu nascimento.
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