Como é que foi o seu 25 de Abril? Ó pá, os colhões do
Padre Inácio... já ninguém liga ao 25 de Abril...
quinta-feira, 31 de janeiro de 2019
AGORA NÃO RESPONDO MAIS NADA
Terminamos a entrevista que João Pedro George fez a Luiz Pacheco, uma das melhores entrevistas que fazem parte de O Crocodilo Que Voa.
Tem um final mesmo à
Pacheco, põe o jornalista a andar, porque está cansado, tem de ir mijar e comer
qualquer coisa…
Vai sair na Dom
Quixote, em breve, um diário inédito, o Diário
Remendado...
Aquele diário é uma conversa comigo mesmo, um desabafo... e é um
fragmento de um fragmento do meu diário... é uma amostra, um fragmento daquele
período, entre 1971 e 1975... deitei muita coisa fora... tirei mais de
metade...
Inclusive o relato do
25 de Abril...
Esse corte foi
deliberado... eu não gosto daquele texto... era uma resposta aos gajos que
faziam artigalhadas mais ou menos inventadas com o título “O meu 25 de
Abril”... aquilo era tão presunçoso... não foi só um gajo, ainda foram uns
quantos... se tu fores consultar os jornais na altura verificas isso... era uma
paródia a esses gajos... Como é que foi o seu 25 de Abril? Ó pá, os colhões do
Padre Inácio... já ninguém liga ao 25 de Abril...
Foi de pijama para o Largo do Carmo...
Mas não foi de
propósito... eu estava em casa, sozinho, o Paulo tinha ido para o liceu, estava
a rever provas do Pacheco versus Cesariny... de repente chateei-me, não tinha
telefonia, não tinha televisão, não tinha nada, chateei-me de rever provas e
disse vou ali beber uma cerveja e quando venho de beber a cerveja há o barbeiro
que me diz «ó senhor Pacheco, olhe que há revolução em Lisboa». Então enfiei o
sobretudo que me deu o marido da Natália Correia e fui para Lisboa... não foi
de propósito que eu fui para o Carmo de sobretudo e pijama... Agora não
respondo mais nada… Estou cansado… são 80 anos, caramba! Vá, pira-te que eu
tenho de mijar e tenho de ir comer qualquer coisa…
Etiquetas:
Leituras,
Luiz Pacheco Leituras
OLHAR AS CAPAS
Tratado das Paixões da Alma
António Lobo Antunes
Capa: Fernando Felgueiras
Publicações Dom
Quixote, Lisboa Novembro de 1990
Lembrou-se de quando tinha doze ou treze anos, roubava cigarros ao avô,
os dividia com o filho do caseiro e se estendiam ambos na relva, a fumar, vendo
o céu de Setembro no intervalo das acácias. Sorriu ao repuxo do lago e aos
bancos de azulejo que separavam o jardim do roseiral, e o Juiz de Instrução
inclinou-se de imediato para a frente, de mãos espalmadas numa confusão de
papéis: – O quê? – Não disse nada, são coisas antigas que me vêm à ideia, não
ligue. O avô em baixo, de casaco de verão, na cadeira de lona sob o guarda-sol
desbotado, assente nos ladrilhos onde aos domingos, a seguir ao almoço, a
família montava as mesas da canasta, e eles aqui, rente aos gladíolos, chupando
beatas clandestinas com a caixa de fósforos da cozinha no bolso, assistindo ao
leme do moinho que bailava para a direita e para a esquerda à procura do vento.
Etiquetas:
António Lobo Antunes Livros,
Olhar as Capas
quarta-feira, 30 de janeiro de 2019
COMEÇOS DE LIVROS
Até agora, o começo que mais me tinha impressionado era o de O
Estrangeiro. Li-o nos tempos da minha
mais inicial juventude e sem que ninguém me avisasse do que ali me esperava:
«Hoje, a mamã morreu. Ou talvez ontem, não sei.» Não se me escapa que esse
início está considerado um dos melhores da novela contemporânea. Vem-me outro à
memória, de leitura mais recente: «Fui cordialmente convidado para fazer parte
do realismo visceral. Aceitei, naturalmente. Não houve cerimónia de iniciação.
Antes isso» (Roberto Bolaño, Os Detectives Selvagens). É um começo magnífico, precisamente porque carece de qualquer espécie
de iniciação.
Enrique Vila-Matas em Diário Volúvel
Etiquetas:
Albert Camus,
Enrique Vila-Matas Leituras,
Leituras
NOTÍCIAS DO CIRCO
O PSD sempre foi um
equívoco.
O Partido Socialista
ocupou-lhe o espaço e no dia em que Mário Soares arrumou o marxismo numa
gaveta, nunca mais teve qualquer possibilidade.
Andou todos estes
anos alternando o poder e as manigâncias com o Partido socialista e nada mais.
Afastados do poder,
sem vislumbres de, nos próximos tempo, a ele aceder, vive momentos de angústia.
Pedro Passos Coelho
já nem sombra é, e Rui Rio que lhe ocupou o lugar tem vivido momentos
complicados e inenarráveis.
Pedro Santana Lopes
já saiu fundando um outro partido - a «Aliança».
Um tipo execrável que
dá pelo nome de André Ventura outro partido formou e chamou-lhe «Chega»
Luís Montenegro, ex-lider
parlamentar, desafiou Rio e houve a necessidade de se realizar um conselho
nacional para separar águas ou lá o que foi.
Aconteceu a 18 de Janeiro,
estendeu-se pela madrugada, houve gritaria vária, encontros e desencontros, e
Rio fortaleceu a sua posição presidencial.
Vasco Pulido Valente
que aos sábados, no Público, escreve
um diário, assistiu, melancolicamente ao evento e acabou por concluir:
«Ninguém me conseguiu dar uma boa razão para o PSD existir.»
Etiquetas:
Notícias do Circo,
Pedro Santana Lopes,
Rui Rio
OLHAR AS CAPAS
O Estranho Caso da Velha Curiosa
Agatha Christie
Tradução: Mascarenhas
Barreto
Capa: Lima de Freitas
Coleção Vampiro nº
189
Livros do Brasil,
Lisboa s/d
Mrs. McGillicuddy seguia arquejando, ao longo do cais, na esteira do
carregador que lhe transportava a mala. Mrs. McGillicuddy era baixa e
corpulenta, ao passo que o carregador era alto e esgalgado. Além disso, Mrs. McGillicudy
ia carregada com uma quantidade de embrulhos, resultado de um dia de compras
para o Natal. Por conseguinte, a corrida era desigual e o carregador dava já
a volta ao extremo do cais, quando Mrs. McGillicuddy ia ainda a meio deste.
terça-feira, 29 de janeiro de 2019
UM IMENSO FASTIO DE TUDO
O fim.
O Futuro foi algo que
Pavese nunca quis alcançar.
Terá sido?
18 de Agosto de 1950.
Lança para o seu
Diário:
A coisa mais secretamente temida acaba sempre por acontecer.
Escrevo: ó Tu, tem piedade. E depois?
Basta um pouco de coragem.
Quanto mais a dor é determinada e exacta, tanto mais o instinto de vida
se revolta e a ideia de suicídio tomba.
Quando em tal pensava, parecia fácil fazê-lo. No entanto, há pobres
mulheres que o fizeram. O que se requer é humildade, não orgulho.
Um imenso fastio de tudo.
Basta de palavras. Um gesto. Não escreverei mais.
Cesare Pavese em Ofício de Viver
Etiquetas:
Cesare Pavese Leiruras,
Leituras
AS ESCADAS
Também elas envelheceram, as escadas,
também, como eu, desabitadas.
Anoiteceu, ao longe afastam-se passos, provavelmente
os meus,
e, à nossa volta, os nossos corpos desvanecem-se como
terras estrangeiras
Manuel António
Pina
segunda-feira, 28 de janeiro de 2019
POSTAIS SEM SELO
Atenção aos estúpidos! Fazem pouco e têm sucesso…
Legenda: não foi
possível identificar o autor/origem da ilustração.
FAÇO-ME COMPREENDER?
Carta de Jorge
de Sena, datada de Lisboa 11 de Outubro de 1953, para Ant´nio Ramos Rosa:
Meu caro Ramos
Rosa
Não, não acho que V. seja um «chato». Pelo contrário,
agrada-me tanto que apelem para mim! Agrada-me tanto poder ser útil ou
agradável por pouco que seja! E aqui tem também V, como eu também sou:
fiquei-me embevecido no agrado do apelo e, disperso pela minha vida (o seu
postal apanhou-me até ausente no Porto, em serviço), não acudi e era o que
quereria, mais o que devia. Perdoa-me V. o silêncio e a demora? E está V;
melhor?
Por este correio, seguem o último número da Critique e o livro do Caillois, em que V,
fala, e que tenho em espanhol por sinal (para o caso tanto faz).
Não, Rosa, eu não assino nada (nem pude ainda renovar
a assinatura da Critique), e
mal compro um livro – se o dinheiro nem me chega para eu e a família passarmos
ao mês seguinte! Não tenho o Frénaud em que me fala também. O livro do Monnerot
chama-se Les faits sociaux ne sont pas
des choses – é de muito interesse, mas não o tenho também.
Noutro passo da
carta, sena escreve:
Porque, meu caro Rosa, não só com poemas nunca ninguém
ganhou a vida, mas, bem pior que isso (visto que nos deveria assistir o direito
de não a ganharmos…), se perde a independência perante a realidade, que, em si
mesma e sem nós, não é poética.
Faço-me compreender? E vai longe o tempo dos Mecenas e das princesas de Thurn e
Taxis emprestando castelo aos Rilkes.
Etiquetas:
Jorge de Sena Correspondência,
Leituras
OLHAR AS CAPAS
Crónicas Algarvias
Manuel da Fonseca
Capa: Armando Alves
Editorial Caminho,
Lisboa, Dezembro de 1986
Avançando, coxia fora, noto pela primeira vez que há
poucos passageiros. Sento-me no meu lugar, abro o jornal. Não consigo
concentrar-me. Os pensamentos afastam-se da leitura. Lembro-me da família, os
vizinhos, a vila, neste instante tão perto do comboio onde viajo. Teimo em ler.
Mas, as recordações voltam. Nítida, ressoa-me na memória uma voz familiar:
- Olha que não deves ler nos comboios. Ou noutros meio
de transporte.
- Porquê, tia?
- Porque pode provocar um descolamento da retina.
Etiquetas:
Armando Alves,
Manuel da Fonseca Livros,
Olhar as Capas
CANÇÃO MUTILADA
A tarde cai amaciando a terra,
E enchendo-a de
miragens tentadoras
Enquanto o Sol,
Nos últimos
alentos,
Se prende aos
galhos de um arbusto
Que, ressequido, à
beira de uma ermida,
Parece o próprio
símbolo da Vida.
De enxada ao
ombro, alguns trabalhadores,
Pisam o pó e as
pedras dos caminhos
- Como bandeiras
humanas
Movidas pelo
infortúnio,
Sem alegria,
sórdidos, curvados,
Mas enormes no seu
frémito de luta!
Ah!, nem a Morte
quer os homens
Quando eles são
desgraçados!
As estrelas lá, no
alto,
Riscam cintilantes
brilhos.
E em bandos –
Os maltrapilhos,
Silenciosos e
ateus,
Zombam do Amor
E até de Deus!
A miséria
Quando atola
O homem nos seus
negros labirintos,
Dá-lhe, também, a
loucura
Dos mais trágicos
instintos…
Agora, neste
momento,
A noite –
É a imensa
realidade…
E eu julgo ver a
justiça
Afundar-se na
penumbra
Da sua inútil
verdade.
António Botto
Legenda: retrato de António Botto por Almada
Negreiros
Etiquetas:
António Botto Poemas,
José de Almada Negreiros
domingo, 27 de janeiro de 2019
POSTAIS SEM SELO
Desde que me tornei um forçado do escrever, para mim
acabou o prazer da leitura.
Italo Calvino em Se Numa Noite de Inverno Um Viajante
Legenda: Italo Calvino
Etiquetas:
Italo Calvino,
Postais Sem Selo
O MOVIMENTO INVISÍVEL DA LEITURA
Sentada numa cadeira de praia, no terraço de um chalet
no fundo do vale, há uma jovem mulher a ler. Todos os dias antes de me pôr a
trabalhar fico um bocado a olhá-la com o óculo. Neste ar fino e transparente
parece-me captar na sua figura imóvel os sinais desse movimento invisível que é
a leitura, o correr do olhar e do respiro, mas ainda mais o percurso das
palavras através da pessoa. O seu fluir ou deter-se, os impulsos, as demoras,
as pausas, a atenção que se concentra ou se dispersa, os recuos, esse percurso
que parece uniforme e afinal é sempre mutável e acidentado.
Há quantos anos não posso dar-me ao luxo de uma
leitura desinteressada? Há quantos anos não consigo entregar-me a um livro
escrito por outros, sem nenhuma relação com as coisas que devo escrever eu?
Viro-me e vejo a secretária que me espera, a máquina com a folha no rolo, o
capítulo para começar. Desde que me tornei um forçado do escrever, para mim
acabou o prazer da leitura. O que eu faço tem como fim o estado de espírito
desta mulher sentada na cadeira de braços enquadrada pelas lentes do meu óculo,
e é um estado de espírito que me está proibido.
Todos os dias antes de me pôr a trabalhar olho para a
mulher na cadeira: digo para comigo que o resultado do esforço inatural a que
me submeto ao escrever deve ser o respiro desta leitora, a operação da leitura
transformada em processo natural, a correspondente que levas as frases a roçar
o filtro da sua atenção, a imobilizarem-se um instante antes de serem
absorvidas pelos circuitos da sua mente e desaparecem convertendo-se nos seus fantasmas
interiores, no que nela é mais pessoal e incomunicável.
Italo Calvino em Se Numa
Noite de Inverno Um Viajante
Legenda: A Leitura de Bridget de Peter
Samuelson
Etiquetas:
Italo Calvino Leituras,
Leituras
OLHAR AS CAPAS
Era Porto e Entardecia
De Absinto a Zurrapa
Dicionário de vinhos
e bebidas alcoólicas em geral na obra de Eça de Queiroz
Dário de Castro Alves
Capa: Rogério Petinga
sobre aguarela de Júlio Resende
Pandora, Lisboa, 1995
- My dear, está visível? – perguntou Miss Sarah, à porta.
- Ah sim! Podia entrar. Uma gotinha de gin, Miss Sarah?
O rosto da inglesa clareou-se de prazer: Uma gotinha. Um quase nada.
Bastava! Com água. Era Old Tom, não?
Só mais uma gotazinha. Just a little drop! That will do. Thanks.
Sentara-se, bebia o seu gin, devagar, com concentração. E repetia com
devoção a sua máxima muito inglesa:
- Um estimulantezinho é a saúde da alma.
Em A Tragédia da Rua das Flores
Etiquetas:
Dário Castro Alves,
Eça de Queiroz,
Olhar as Capas
NÃO É O OUTRO
Não é o Outro que tu buscas? Sim,
a explosão dos tais
espelhos. Sei
também que olhar
esses teus olhos
provoca as miragens
– o deserto.
Perto daí estava o
estrangeiro,
e as veredas
abriam-se sem medo.
Recordas a viagem,
ida sem volta,
onde os poemas
ferviam já em leite.
Azedo tu estavas,
meu escriba,
os comboios
povoavam a escuridão
e, de encontrão em
encontrão,
tu sorrias à
viagem. Lá longe,
no planalto em
chamas,
os índios
perguntavam pelo livro.
Eduardo Guerra Carneiro em A Noiva das Astúrias
Legenda: desenho de Carlos Ferreiro tirado de A Dama das Astúrias
Etiquetas:
Eduardo Guerra Carneiro Poemas
sábado, 26 de janeiro de 2019
POSTAIS SEM SELO
É demasiado o que
há para contar. E o que é demais torna-se exíguo.
Dinis Machado em O Lugar das Fitas
Legenda: pintura de Massimo Marchetti
Etiquetas:
Dinis Machado,
Postais Sem Selo
LEITURAS
Terminamos hoje as Leituras, que iniciámos a 15 de Setembro de 2018, do Volume IX dos Dias Comuns de José Gomes Ferreira.
Tal como então dissemos, os Dias Comuns têm vindo a perder aquela fressura do inventar dos dias
que o Zé Gomes emprestou nos primeiros volumes já publicados.
Ele reconhece:
«Cada
vez escrevo com maior dificuldade».
TALVEZ PARA A SEARA, TALVEZ PARA O LISBOA...
28 de Agosto de 1970
O José Cardoso Pires telefonou-me. Quer um artigo meu para o Diário de Lisboa.
- O suplemento literário é muito mau e quero transformá-lo…
Estou de férias, pá. Vamos a ver se consigo arranjar coragem para isso.
Entretanto ele ia dizendo: O Carlos critica, critica, mas nunca me
manda um artigo…
1 de Setembro de 1970
Morreu Mauriac. Dos seus romances sempre extraí esta visão: o
cristianismo não era um produto da bondade dos homens, mas da sua maldade
ingénita. Se os homens fossem bons não precisavam de Cristo.
2 de Setembro de 1970
Passei o dia a
escrever um artigo, talvez para a Seara Nova, talvez para o Diário de Lisboa…
Cada vez escrevo com
maior dificuldade.
Ainda bem.
José Gomes Ferreira em Dias
Comuns Volume IX
OLHAR AS CAPAS
Era Tormes e Amanhecia
Dicionário Gastronómico cultural de Eça de Queiroz
2º Volume
Dário de Castro Alves
Capa: A. Pedro
Livros do Brasil. Lisboa, 1982
- Ai, filha! As
mulheres querem-se como as peras, maduras e de sete cotovelos. Então é que é
chupá-las!
Os padres
gargalharam; e, alegremente, acomodaram-se à mesa.
Em O Crime do Padre
Amaro
Etiquetas:
Dário Castro Alves,
Eça de Queiroz,
Olhar as Capas
UMA VIDA UM BOCADO ATRIBULADA...
Na entrevista que Luiz Pacheco deu a João Pedro George fala-se do livro «Mano Forte», dezassete
cartas que Luiz Pacheco escreveu a António José Forte:
E o livro Mano Forte, a correspondência para
o António José Forte?
Quem conheça um
pouco da minha vida sabe que eu tive uma vida atribulada, com fugas de
casas, de terras, de mulheres, de calotes e cobradores, da polícia e até dos
ladrões, de ambientes… eu sempre tive o cuidado, quer em Setúbal, quer nas
Caldas da Rainha, quer na Macieira, quando aparecia uma ameaça de ser preso ou
ter que mudar rapidamente de casa, de não andar carregado com dossiers cheios
de tralha… ficou-me muita tralha perdida para aí… ainda bem que ficou…
Mas gostas do resultado final do livro?
Mas gostas do resultado final do livro?
Dali não vem mal ao
mundo. Podia vir se isto fosse uma edição que não tivesse venda. Isto é muito
cuidado. Se teve venda alguém ganhou, ganhou a tipografia, ganhou a fábrica de
papel, ganhou também o editor… Eu tenho uma certa cagança nisto. Repara, eu
estou aqui no quarto, não saio à rua há mais de um ano e de repente estou na
montra da FNAC… é uma maneira de sair daqui.
Lembras-te de ter escrito aquelas cartas e aqueles postais?
Lembras-te de ter escrito aquelas cartas e aqueles postais?
Não me lembrava de
nada. Publiquei cartas minhas para na cadeia do Forte de Caxias e do Forte para
mim no Pacheco versus Cesariny. Isto é nem mais nem menos o resultado de um
gajo que teve uma vida fodida, ou variada, salta de Lisboa para Setúbal, de
Setúbal salta para as Caldas da Rainha, salta para Almoinha, Sesimbra, salta
para Vieira do Minho. As cartas também são para vários sítios porque como o
Forte era funcionário das bibliotecas itinerantes andava por Vieira do Minho,
Portalegre, Santarém, Tomar…
Qual a memória que guardas do António José Forte?
Qual a memória que guardas do António José Forte?
O que não está aqui
feito e também agora não interessa fazer era valorizar, dar o seu justo valor à
figura do Forte. Eu tentei convencer o Bernardo Sá Nogueira... não quis, achou
que não… O Forte nunca foi um gajo de se evidenciar muito, de se por em bicos
de pé… é claro que este livro era uma boa oportunidade de chamar a atenção para
o Forte… Olha, não quero falar de mortos. Aqui no lar já há muitos mortos. Aqui
está tudo morto. O gajo da cadeira de rodas… Quando passa aqui o cortejo, à
hora de almoço, à hora de jantar…
Como é que esta correspondência aparece passados tantos anos?
Como é que esta correspondência aparece passados tantos anos?
Um tipo sabe que
fulano, António José Forte, por exemplo, guardou coisas que lhe mandou, cartas
e postais, guardou, morreu, foi parar às mãos de alguém e depois aquilo
representa um valor… e então vendem… depois aparece um urubu mais categorizado,
com outra perspectiva empresarial e faz a edição. Eu em princípio não posso
estar contra isso. De qualquer forma, este livro é uma golpada, é de rabo à
mostra… repara, é uma edição de 1000 exemplares a um preço, mais 100 a outro
preço, numerados, com mais 30 a outro preço, numerados também, uns em romanos e
outros em árabe. É o intuito do alfarrabista a valorizar as cartas que lá tem.
Seja como for, o livro está cheio de disparates. Passaram a vida a foder-me.
Como por exemplo?
O título, desde
logo o título. Eu não conheço as cartas nem os postais, mas duas dezenas de
cartas e três postais nunca podem ser “cartas fortes”, que era como o Bernardo,
no início, lhe queria chamar… há uma carta maior, mas o resto são tudo cartas
pequeninas… O Bernardo Sá Nogueira diz sobre estes postais que era “escrita
premeditada no pressuposto de publicação”. Isto é um disparate, é a armar em
esperto. Quem vê os postais que vêm ali, em fax-simile… então um gajo escreve
um postal destes a pensar que vai ser publicado? Eu agora quase não escrevo
postais com o objectivo de não serem publicados. Escrevo muito poucos postais e
cartas, então, é um caso sério. Aqui já não é o interesse amigo de guardar um
papel de um gajo que lhe mandou, aqui é já o interesse meramente mercenário de
fazer dinheiro com o papel. No gesto de guardar cartas há uma certa
afectividade ou interesse ou coisa que o valha. Um gajo que está numa cadeia,
num hospital, numa aldeia, se comunica com alguém, se gosta de comunicar, a
carta é um derivativo. Ainda mais nessa altura, no tempo do antigamente, do
fascismo, a carta era uma expressão livre, claro que os gajos muitos cautelosos
nem cartas nem postais escreviam. Agora eu escrevia imenso… Este livro é uma
golpada. É evidente. Por exemplo, a fotografia na capa… é uma maluqueira como
outra qualquer… Dá ideia que eu é que sou um exibicionista, que gosta de vir
nas capas… é para chamar, para vender mais… Isto faz vender. A fotografia e o
nome fazem vender…
Etiquetas:
António José Forte,
Leituras,
Luiz Pacheco Leituras,
Luiz Pacheco Livros
sexta-feira, 25 de janeiro de 2019
POSTAIS SEM SELO
O que de mais importante temos para dizer uns aos outros nem sempre o
dizemos em voz alta,
Frase lida numa
crónica de José Tolentino Mendonça.
Legenda: não foi possível identificar o autor/origem da fotografia.
Etiquetas:
José Tolentino Mendonça,
Postais Sem Selo
O QU'É QUE VAI NO PIOLHO?
A Matiné das Duas
Na penumbra da pequena sala talvez o milagre
Na penumbra da pequena sala talvez o milagre
fosse um gato preto que miasse
ou uma mulher loura
que cantasse
uns blues vagamente sinceros
e se decidisse depois por um streap-tease de músculos
hermafroditas.
Mas tudo parece de cartão.
Ver um filme às duas em ponto da tarde
é como entrar
num drama de papéis higiénicos
para doentes do sido.
Quem pode habitar este pulmão
sem ar
e ouvir saltar a tosse
como rãs da secura para o veneno do mundo
em celuloide?
Não sentimos sequer uma perna avançar
sonâmbula,
dormente pelas agulhas do desejo
ou o olhar aceso no escuro
dum rosto
que o desespero
transforma numa visão celeste,
quase inebriada.
É o tempo do limbo das lamas solitárias,
sentadas, em princípio da tarde
de má vida,
p tempo dos animais quietos, subterrâneos,
à espera.
Depois virá correndo, veloz, essa inocente droga
que te leva a sonhar
com um suicídio discreto,
de veludo puído,
descoberto duas horas depois
ao reacender das luzes,
pelos outros quatro ou cinco
que continuam vivos
como tu.
Armando Silva
Carvalho em Lisboas
À CONVERSA
Mas, descontada a terminologia, foi sempre mantendo uma
atitude crítica em relação ao modo como a literatura se foi tornando
indistinguível de outros produtos de consumo. E saberá do que fala, uma vez que
foi técnico de publicidade.
A grande tragédia
da minha vida foi ser publicitário. Digo isto muito seriamente. Uma vida que
fui obrigado a viver de forma...
Esquizofrénica?
Exactamente, a
palavra é essa. Nessa altura, a publicidade era vista pelos bem pensantes como
um trabalho quase de prostituição. O facto é que não consegui arranjar emprego
com o curso de Direito, e também não me interessava muito ser advogado. E na
função pública estava proibido de trabalhar por razões políticas. Eu achava que
um dia poderia ir para a diplomacia. Via o Saint-John Perse, esses tipos, o
Paul Claudel, e achava que era o que me convinha. Sentava-me a uma secretária e
tinha tempo para fazer versos. Não fazia mais nada, só versos, e andava com uma
faixa ao peito. É ridículo, mas é verdade que pensava nisto. Também podia ter
ido para Medicina. E se calhar devia ter ido. Houve um professor que insistiu
muito comigo, mas acabei por ir para Direito. Sempre com a expectativa de que
um dia o Salazar ia morrer – caía de uma cadeira qualquer –, e depois havia
liberdade e eu podia ir para a diplomacia.
Entrevista de Luís Miguel Queirós a Armando Silva
Carvalho em Público 1 de Junho de
2017
Etiquetas:
À Conversa,
Armando Silva Carvalho
OLHAR AS CAPAS
Era Tormes e Amanhecia
Dicionário
Gastronómico cultural de Eça de Queiroz
1º Volume
Dário de Castro Alves
Prefácio: Jorge Amado
Capa de A. Pedro
Livros do Brasil
Diante do louro frango assado no espeto e da salada que ele apetecera
na horta, agora temperada com um azeite da serra digno dos lábios de Platão,
terminou por bradar: ”É divino!”.
De A Cidade e as Serras
Etiquetas:
Dário Castro Alves,
Eça de Queiroz,
Jorge Amado,
Olhar as Capas
NOTÍCIAS DO CIRCO
Marcelo não deixa de
surpreender.
Cada intervenção que
faz seja sobre o que quer seja tem um objectico nem sempre muito claro.
Os portugueses
estão-se borrifando para as comemorações do 10 de Junho dê-se ao a esse dia a designação
que lhe queiram dar.
Tal como, Cavaco
Silva enquanto presidente, disse: «É o Dia da Raça!»
Mas soube-se ontem
que Marcelo designou João Miguel Tavares, diz-se jornalista, também humorista,
para presidir à comissão das comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das
Comunidades Portugueses.
Se ele não vier dar
uma explicaçãozinha professoral, não se compreende os motivos da escolha.
Mas, grosso modo, não
abona nem o Presidente da República nem o tal dia.
Etiquetas:
Marcelo Rebelo de Sousa,
Notícias do Circo
quinta-feira, 24 de janeiro de 2019
POSTAIS SEM SELO
Como é que o cinema português resiste aos seus detractores e a todos
aqueles que objectivamente trabalham para o tornar inócuo ou inexistente.
António Guerreiro no Público
Legenda: rodagem de Trás-os-Montes de Margarida Cordeiro e
António Reis
Etiquetas:
António Reis,
Postais Sem Selo
O HINO OFICIAL DOS CARTEIROS
-Trouxe-te de Santiago
uma prenda muito especial. 0 «Hino oficial dos carteiros».
Juntamente com
estas palavras, a música de Mister Postman pelos Beatles expandiu-se pela sala desestabilizando as carrancas de
proa, revirando os veleiros dentro das garrafas, fazendo ranger os dentes das
máscaras africanas, despetrificando os tijolos, estriando a madeira, amotinando
os rendilhados das cadeiras artesanais, ressuscitando os amigos mortos
inscritos nas vigas sob o tecto, fazendo fumegar os cachimbos há muito tempo
apagados, tocar viola às barrigudas cerâmicas de Quinchamali, emanar perfumes
às cocotes da Belle Époque que forravam as paredes, galopar o cavalo azul, e
apitar a grande e vetusta locomotiva sacada a um poema de Whitman.
E quando o poeta lhe
pôs nas mãos a capa do disco nos braços, como se lhe confiasse a custódia de um
recém-nascido, e começou a dançar agitando os seus lentos braços de pelicano
tal como os despenteados campeões dos bailes de bairro, marcando o ritmo com
aquelas pernas que frequentaram a tepidez das coxas de amantes exóticas ou aldeãs
e que pisaram todos os caminhos possíveis da terra e os inventados pela sua própria prosápia,
dulcificando as pancadas da bateria com a trabalhosa mas decantada ourivesaria
dos anos, Mário soube que vivia agora um sonho: eram os prolegómenos de um
anjo, a promessa de uma glória próxima, o ritual de uma anunciação que traria
aos seus braços e aos seus lábios salgados e sedentos a buliçosa saliva da
amada. Um anjinho de túnica em chamas – com a doçura e parcimónia do poeta –
garantia-lhe umas rápidas núpcias. O seu rosto engalanou-se com essa fresca alegria,
e o esquivo sorriso reapareceu com a simplicidade de um pão sobra a mesa
quotidiana. «Se um dia morrer – disse para consigo, - quero que o céu seja como
este instante.»
CONTINUEM A DAR O MESMO...
Deixo a televisão ligada e regresso horas depois, ao entardecer, e não
me surpreende minimamente que ainda continuem a dar o mesmo.
Enrique Vila-Matas em
Diário Volúvel
Etiquetas:
Enrique Vila-Matas Leituras,
Leituras,
Televisão
quarta-feira, 23 de janeiro de 2019
OLHAR AS CAPAS
O Meu Amigo Maigret
Georges Simenon
Tradução: Mascarenhas
Barreto
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº
138
Livros do Brasil,
Lisboa s/d
- Estava à porta do seu estabelecimento?
- Sim, meu comissário.
Era inútil repreendê-lo. Por quatro ou cinco vezes, Maigret tentara a
dizê-lo «sr. comissário». Mas que importância tinha isso? Que importância tinha
tudo aquilo?
- Viu um carro cinzento, um «Grande sport» para por um instante e descer dele um homem, quase em andamento, não
foi isso que declarou?
- Sim, meu comissário.
- E esse tipo, para entrar na sua boite, teve de passar junto de si, chegando até a empurra-lo ligeiramente.
Ora, sobre a porta, há um letreiro luminoso a néon.
- É de cor violeta, meu comissário.
- E então?
- Então, nada.
- Lá porque o seu letreiro é violeta não pôde reconhecer o indivíduo
que, um momento depois, passando o reposteiro de veludo, despejou o revólver
sobre o seu barman?
terça-feira, 22 de janeiro de 2019
BALANÇO DESTE ANO QUE NÃO TERMINAREI
17 de Agosto de 1949
Os suicidas são homicidas tímidos. Masoquismo em vez de sadismo.
O prazer de fazer a barba depois de dois meses de reclusão –de me
barbear a mim próprio. Diante de um espelho, num quarto de hotel, lá fora o
mar.
É a primeira vez que faço o balanço de um ano por concluir.
No meu ofício, portanto, sou rei.
Em dez anos consegui tudo. Quando penso nas hesitações de outrora.
Na minha vida, sinto-me desesperado e perdido como não me sentia então.
Que acrescentei? Nada. Ignorei durante alguns as minhas taras, vivi como se
elas não existissem. Fui estóico. Era heroísmo? Não, não me custou. E depois,
ao primeiro assalto da «inquietação angustiosa», caí de novo nas areias
movediças. Debato-me desde Março nelas. Não têm importância os nomes. Serão por
acaso mais que nomes dados pela sorte, nomes fortuitos – esses, ou outros?
Resta que sei agora qual é o meu maior trunfo – e a tal triunfo falta a carne,
falta o sangue e falta a vida.
Nada tenho a desejar nesta terra, excepto aquilo que quinze anos de
insucesso excluem a partir deste momento.
Eis o balanço deste ano por terminar e que não terminarei.
Espantas-te de que os outros passem a teu lado e não saibam, quando tu
p+roprio passas ao lado de tanta gente sem saber: Não te interessa qual o pesar
de cada um, o seu cancro secreto?
Cesare Pavese em Ofício de Viver
Etiquetas:
Cesare Pavese Leiruras,
Leituras
OLHAR AS CAPAS
As Estações da Vida
Agustina Bessa-Luís
Prefácio: António
Barreto
Capa: Carlos César
Vasconcelos sobre fragmento de Le Train
dans la neige
De Claude Monet
Relógio d’Água,
Lisboa, Outubro de 2018
A viagem de comboio tinha um cunho espirituoso. Sempre se encontravam
pessoas raras, porque a província preservava o indivíduo e conservava o seu
dialecto e os seus costumes. Eram recoveiras, caixeiros-viajantes, gente do
negócio e do contrabando, estudantes em férias ou que as tinham terminado,
padres e professores; e um sem-número de passageiros precavidos com um farnel
de pombos estufados em vinho do Porto e cavacas de Resende. Comida de gente
regalada e antiga como havia na província profunda.
Etiquetas:
Agustina Bessa-Luís Livros,
Comboios,
Olhar as Capas
segunda-feira, 21 de janeiro de 2019
NOTÍCIAS DO CIRCO
Em busca de leitores
e audiências, o vale tudo já há muito invadiu jornais e televisões.
Esta capa do Público de domingo 13 de Janeiro é,
simplesmente, miserável.
Ao nível do melhor jornalismo de sargeta que por aí
pulula, no mesmo dia em que, também em 1ª página, anuncia o regresso desse
comentador de triste figura que dá pelo nome de António Barreto.
Lê-se que Cristina
Ferreira tem «Portugal a seus pés».
Onde vais jornalismo
de referência que dizias que eras?
O Dudu, no café da
Dona Luzia, diz que a dita personagem é «pobre
de boa».
O Goucha, na TVI,
convida um nazi para dizer alarvidades.
Estamos nisto!
Até onde?
Até quando?
Etiquetas:
Jornais,
Notícias do Circo,
Televisão
ESTA VONTADE DE ME SALVAR
Datada de 11 de
Agosto de 1953, uma carta desesperada, entre tantas outras, de António Ramos
Rosa para Jorge de Sena.
Uma aguda solidão,
problemas de saúde, sem meios económicos
para uma qualquer assistência médica, e, pelo meio o germinar de uma obra
notável de um dos maiores intelectuais portugueses.
Tenham em atenção que
a Assírio & Alvim já publicou o 1º volume da sua Obra Poética, uma edição organizada
e revista pelo poeta Luís Manuel Gaspar, com a colaboração da viúva do poeta, a
poetisa Agripina Costa Marques, e da filha, Maria Filipe Ramos Rosa.
Oxalá eu estivesse a entrar numa fase madura de consciencialização e V.
me pudesse ser de algum valimento. Eu sou hoje alguém que, com todo o corpo e
toda a alma, desejo ser sadio. Integral, consistente, elementar. Não por
capricho de intelectualidade blasée,
mas por imperativos vitais e morai, por necessidade de salvação. Uma conversão
radical se há-de dar, no meu corpo ou no meu espírito, ou em ambos, ou então a
morte purificadora. O seu bom conselho de não me deixar devorar pela solidão e
de tomar posse dela tem sido possível de certo modo, dentro das minhas fracas
possibilidades, mas o que se impunha era uma matéria real em que essa posse não
se volatizasse a todo o instante. Infelizmente a minha saúde não tem melhorado
e, desprovido de meios económicos e qualquer assistência médica, estou
simplesmente entregue a esta tensão desesperada de superação, a esta vontade de
me salvar.
Tenho os números de Critique
que me enviou quase todos lidos. É uma revista indispensável, magnífica. Talvez
seja muito triste confessar-lhe que as verdadeiras férias e alegrias deste
Verão foram para mim a leitura dos excelentes ensaios que nelas encontrei.
Dentro de dias lhas enviarei.
Etiquetas:
António Ramos Rosa Correspondência,
Leituras
ADIAMENTO
Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só
depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha
infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...
O porvir...
Sim, o porvir...
Álvaro de Campos em Poesias
Etiquetas:
Fernando Pessoa Poemas,
Fernando Pessoa/Álvaro Campos
Subscrever:
Mensagens (Atom)