No homem existe um velho esquálido que dorme nele há
séculos. Nós é que não nos lembramos; é o nosso pai que construiu a arca, o
nosso pai operário; trabalhou, embriagou-se, e agora dorme com um sorriso, nu,
através dos séculos.
Teria os meus 15
anos quando a canção «Camino del Sahara» de Los Tamara teve um enorme sucesso.
Passados aqueles
tempos, outras canções vieram e eu nunca mais ouvi o «Caminho de Sahara.»
Há uns 8 anos,
num dos Almoços-Ié-Ié, em conversa com o Daniel Bacelar, mais coisa menos coisa,
somos da mesma idade, falei-lhe nos Tamara e ele de imediato disse: «eh pá! Eu
tenho isso lá em casa, posso-te fazer uma cópia.»
Isto a um sábado
e, ao bater do correio na manhã de terça-feira, eu tinha a colectânea de Los
Tamara, com todo aquele cuidado que a Fernanda Bacelar coloca nas cópias que
faz de Cds.
Desculpem
qualquer coisinha, mas ainda hoje me arrepio quando a ouço:
«Y la luna parece un turbante de plata perdido de Alá.»
Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a
morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu, espírito admirável que
cultivava não só a poesia em moldes originais, mas também a crítica
inteligente, morreu anteontem em silêncio, como sempre viveu, mas como as
letras em Portugal não sustentam ninguém, Fernando Pessoa empregou-se num
escritório comercial, e, linhas adiante, junto do jazigo deixaram os seus
amigos flores de saudade. Não diz mais este jornal, outro diz doutra maneira o
mesmo, Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação
nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar,
surpreendeu-o a morte num leito cristão do Hospital de S. Luís, no sábado à
noite, na poesia não era só ele, Fernando Pessoa, ele era também Álvaro de Campos,
e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis.
Fernando Pessoa já não é Fernando Pessoa, e não porque
esteja morto, a grave e decisiva questão é que não poderá acrescentar mais nada
ao que foi e ao que fez, ao que viveu e escreveu, se falou verdade no outro
dia, já nem sequer é capaz de ler, coitado. Terá de ser Ricardo Reis a ler-lhe
esta outra notícia publicada numa revista, com retrato em oval, A morte
levou-nos há dias Fernando Pessoa, o poeta ilustre que levou a sua curta vida
quase ignorado das multidões, dir-se-ia que, avaliando a riqueza das suas
obras, as ocultava avaramente, com receio que lhas roubassem, ao seu fulgurante
talento será feito um dia inteira justiça, à semelhança de outros grandes
génios que já lá vão, reticências, filhos da mãe, o pior que têm os jornais é
achar-se quem os faz autorizado a escrever sobre tudo, é atrever-se a pôr na
cabeça dos outros ideias que possam servir na cabeça de todos, como esta de
ocultar Fernando Pessoa as obras com medo de que lhas roubassem, como é
possível ousarem-se tais inépcias.
Para Pessoa seria impossível imaginar uma
morte mais perfeita, mais em pontas dos pés. Ele foi internado de urgência num
hospital, ficou um dia, e no dia seguinte morreu. Na ficha clínica não consta
uma razão da morte que seja elucidativa, porque uma crise hepática não quer
dizer nada, qualquer pessoa pode ter uma e não morrer.
«Boa piada, nosso comandante. Estou radiante com a
sereia. Até era capaz de dormir com ela, se ela deixasse.»
«E você que diz, Valdez?, perguntou o Prudentão.
«Olhe, nosso comandante. O que nós no fundo lamentamos,
como diz o meu chefe, é a perda dos postos de trabalho. Cada vez menos faroleiros.
Uma arte que desaparece, não é verdade? O nosso comandante já fala de
automatização. Se o que isso é. Um dia este farol, esta máquina espantosa, não
terá sangue humano a aquecê-lo por dentro. Alguém, de muito longe, carregará em
botões.»
«Não será tanto assim, Valdez. O homem nunca ficará a
mais. Porque toda a maquinaria precisará de ser inspecionada. É verdade que
alguém, à distância, saberá onde ocorreu uma falha, reparável apenas pela mão
humana. E o homem virá como um médico a cas de um doente. Não há volta a dar.»
Mafómedes comentou:
«Será talvez a hora da máquina. Mas a hora da natureza
nunca acabará. E a mão está casada em primeiras núpcias com a natureza. Veja
essa Delcri. Uma papeleira. Uma celulose, a encher de lixo o rio Divor, a ria
de Cheraco, a bulir com as árvores, os campos, as águas, os peixes, a dar cabo
da vida dos pescadores e até desses viveiristas e mariscadores de que falou. O
nosso comandante chamou-lhes sanguessugas, Mas, ao mesmo tempo, quer esta costa
cheia de hotéis, gentes nas varandas a olhar de noite Os Doze Apóstolos
iluminados como as lojas de Oxford Street ou da Rua Augusta.»
Armando Prudentão sabia que viera ali para se
incomodar. É que ele não tinha que dar satisfações aos seus inferiores. E
Mafómedes, como chefe do farol, não tinha equivalência que fosse acima de
tenente da Marinha. Acicatava-o, porém, aquela febre democrática de falar aos
inferiores como companheiros. Explicar-lhes o que não poderiam entender. E eles
nunca entendiam os interesses mais elevados do País. Era necessário que alguns
se sacrificassem. O progresso sempre implicara isso. Quem o ignorava? O coração
daqueles homens ali era um estorvo. O coração sentimentalizava tudo. Não ia
cair numa conversa infantil. Uma conversa de repetir os lugares mais comuns do
mundo.
«Era inevitável que o Fidel, pela idade e pela doença,
tivesse que retirar-se um dia. E não é insignificante que a transição de um
homem que foi tantos anos o condutor de um país, ao chegar a hora da retirada,
se faça de uma maneira mecânica, automática r sem traumas. Ainda falta saber o
que é que vai acontecer, porque por aquilo que vimos a renovação geracional que
terá de haver não aconteceu ainda. Continua a ser a velha guarda, o que não me
parece mal porque se é uma velha guarda que está pensando que efectivamente há
que mudar e prepara essa transição. Cuba não é fácil. Porque castritas ou
fidelistas, gente que em Cuba considera que Castro é quase um deus é
muitíssima, estão lá e querem pelo menos que se respeite a figura e mais tarde
a memória desse homem.»
Em 2003, Saramago
desagradado com a execução de três dos autores do desvio de um barco, escreveu:
«Cuba não ganhou nenhuma heroica batalha fuzilando
esses três homens, mas perdeu a minha confiança, destruiu as minhas esperanças
e defraudou as minhas expectativas.
Aqui cheguei. De agora em diante, Cuba seguirá o seu
caminho, eu fico.»
Fidel, um grande homem. Acabou como ditador e é
preciso dizer que começou por acabar com um ditador, Fulgencio Batista. Com
qualidade rara, a coragem, cortou com a sua própria situação de privilegiado e
arriscou a liberdade e a vida. Aqueles que amocharam em situações semelhantes -
e em Portugal ainda há gerações em que a escolha foi posta - deveriam não se
esquecer de que houve um Fidel que fez o que eles deveriam ter feito e não
fizeram. Que os tíbios reconheçam: "Honra aos que souberam dizer não quando
o não era necessário e nós não estivemos à altura de o dizer." E depois
podiam, com mais mérito, criticar o Fidel liberticida. Acresce ainda que para
lutar contra a ditadura Fidel não pôde contar com o exemplo da admirável
América: ela era madrinha de Batista e madrasta de Cuba. Longe de Deus, não
sei, mas tão próximo dos Estados Unidos - naqueles tempos, pelo menos - era
mais difícil ser democrata. Poder tomado, Fidel tirou partido do seu jeito para
o simbólico: caqui, charuto, barbas... Ora, os ícones - que se mostram muito,
por definição - têm de função mais própria escamotear. Esse Fidel das
fotografias romantizou o que foi; e ajudou a enganar sobre o que aí vinha. Os
factos acabaram por ser: o ditador Fidel assassinou muitos e a todos os seus
compatriotas tirou a liberdade. Ao combatente de grande causa, honra. Ao
tirano, vergonha. E a todos nós, uma lição de história.
Tenho quarenta janelas,
nas paredes do meu quarto,
sem vidros nem bambinelas,
posso ver através delas,
o mundo em que me reparto.
Por uma entra a luz do sol,
por outra a luz do luar,
por outra a luz das estrelas,
que andam no céu a rolar.
Por esta entra a Via Láctea,
como um vapor de algodão,
por aquela a luz dos homens,
pela outra a escuridão.
Pela maior entra o espanto,
pela menor a certeza,
pela da frente a beleza,
que inunda de canto a canto.
Pela quadrada entra a esperança,
de quatro lados iguais,
quatro arestas, quatro vértices,
quatro pontos cardeais.
Pela redonda entra o sonho,
que as vigias são redondas,
e o sonho afaga e embala,
à semelhança das ondas.
Por além entra a tristeza,
por aquela entra a saudade,
e o desejo, e a humildade,
e o silêncio, e a surpresa.
E o amor dos homens, e o tédio,
e o medo, e a melancolia,
e essa fome sem remédio,
a que se chama poesia.
E a inocência, e a bondade,
e a dor própria, e a dor alheia,
e a paixão que se incendeia,
e a viuvez, e a piedade.
E o grande pássaro branco,
e o grande pássaro negro,
que se olham obliquamente,
arrepiados de medo.
Todos os risos e choros,
todas as fomes e sedes,
tudo alonga a sua sombra,
nas minhas quatro paredes.
Oh janelas do meu quarto,
quem vos pudesse rasgar,
com tanta janela aberta,
falta-me a luz e o ar.
Logo ao lado, na divisão contígua, uma grande portada
abria-se sobre a famosa varanda, recinto estreito e comprido, concebido para o
repouso dos adultos, para todas as aventuras de uma infância na cidade,
observatório de todos os possíveis rastos da vida, ponto de convívio
obrigatório nas noites estreladas do verão. Nessa época, durante o dia, nas
alturas de sossego e também em noites muito quentes, quase todas as janelas e
varandas de Lisboa estavam ocupadas: eram as pessoas que aí se visitavam e conversavam,
coscuvilhavam, mal diziam e bem diziam. Era um hábito muito interessante e
extraordinário convivial que Rómulo de Carvalho lembra, cheio de nostalgia, ao
longo da vida.
Era uma característica do tempo, do meu tempo, hoje
totalmente ultrapassada. Chego à janela, nos dias que decorrem, e verifico que
todas as janelas estão fechadas, dia e noite, a não ser quando se abrem, da
parte da manhã para arejar os quartos, mas sem ninguém à vista. À noite é o encerramento
total. Que tereia acontecido? Que prenderá as pessoas, dentro de suas casas,
invisíveis do exterior, como se o governo tivesse declarado o estado de sítio?
A cidade estava situada em pleno Sul, onde os Estios
são compridos, e curtos os meses de Inverno. O céu mantinha-se quase sempre dum
azul vivo e lustroso, e o sol dardejava esplendoroso e quente. Vinham depois as
leves e frescas chuvas de Novembro, em seguida havia uma ou outra geada e os
curtos meses de frio. Os Invernos eram de tempo variável, mas os Verões sempre
ardentes. A cidade era de tamanho médio. Na rua principal havia alguns
quarteirões de prédios de dois a três andares, com lojas e escritórios. Mas os
maiores edifícios eram os das fábricas de fiação e tecidos de algodão, que
empregavam uma larga percentagem da população. As fábricas eram grandes e
florescentes, e os operários muito pobres. Era frequente observar-se nas
fisionomias, que se deparavam nas ruas, um ar de desespero, fome e solidão.
Angelina Barbosa
e Pedro Serrano, os tradutores, para a Relógio d’Água, das Poesias de Bob
Dylan, anotaram sobreA Hard Rain’s A-Gonna Fall:
Escrita durante a crise dos mísseis cubanos, em
Outubro de 1962, a canção reflecte a angústia da possibilidade de uma guerra
nuclear provocada pelo braço de ferro entre Kennedy e Khrusschev. Diz Dylan
que, quando a escreveu, pensava não lhe restar muito mais tempo para escrever
outras canções, pelo que pôs tudo quanto conseguiu nesta, como se fosse uma
canção contendo várias canções.
A estrutura da letra da canção baseia-se em «Lord
Randall», uma canção que Dylan aprendeu com Martin Carthy.
Como mero gosto
pessoal, tenho que esta é uma das grandes canções de Bob Dylan.
Neste tempo que
decorre sobre a morte de Fidel, lembrei-me da canção, como também me lembro
daqueles tempos de angústia, que não sei bem se, após Trump, não poderão estar
de volta.
Numa carta,
datada de 15 de Maio nesse mesmo ano de 1962, José Rodrigues Miguéis escrevia a
José Saramago:
O mundo está muito complicado, mas não o acho
suficientemente absurdo para perder a esperança.
Que se continue
a acreditar em Miguéis.
Oh, onde estiveste, meu filho de olhos azuis?
Oh, onde estiveste, meu jovem querido?
Tropecei na encosta de seis montanhas brumosas
Caminhei e rastejei por seis estradas sinuosas
Entrei pelo meio de sete florestas tristes
Estive na orla de uma dúzia de oceanos mortos
Penetrei dez mil milhas na boca de um cemitério
E é dura, e é dura, é dura, é dura
E é dura a chuva que vai cair
Oh, o que viste, meu filho de olhos azuis?
Oh, o que viste, meu jovem querido?
Vi um recém-nascido rodeado de lobos ferozes
Vi uma estrada de diamantes que ninguém usava
Vi um ramo negro que gotejava sangue
Vi um quarto cheio de homens com martelos sangrentos
Vi uma estrada branca toda coberta de água
Vi dez mil palradores cujas línguas estavam todas
destroçadas
Vi armas e espadas cortantes nas mãos de criancinhas
E é dura, e é dura, é dura, é dura
E é dura a chuva que vai cair
E o que ouviste, meu filho de olhos azuis?
E o que ouviste, meu jovem querido?
Ouvi o som dum trovão, rugia um avisos
Ouvi o bramir duma onda que podia afogar o mundo
inteiro
Ouvi uma centena de tamborileiros cujas mãoas
flamejavam
Ouvi dez mil a sussurrar e ninguém e escutar
Ouvi uma pessoa a morrer de fome, ouvi muita gente a
rir
Ouvi a canção dum poeta que morreu na valeta
Ouvi o soluço de um palhaço que gritou na viela
E é dura, e é dura, é dura, é dura
E é dura a chuva que vai cair
Oh quem encontraste, meu filho de olhos azuis?
Quem encontraste, meu jovem querido?
Encontrei uma criança junto a um pónei morto
Encontrei um homem branco que passeava um cão preto
Encontrei uma mulher jovem cujo corpo ardia
Encontrei uma rapariga, ela deu-me um arco-íris
Encontrei um homem ferido de amor
Encontrei um outro homem ferido de ódio
E é dura, é dura, é dura, é dura
É dura a chuva que vai cair
Oh o que farás agora, meu filho de olhos azuis?
Oh, o que farás agora, meu jovem querido?
Vou voltar lá para fora antes que a chuva comece a
cair
Caminharei para as profundezas da mais profunda e
sombria floresta
Onde as pessoas são muitas e as suas mãos estão
completamente vazias
Onde as bolinhas de veneno inundam as suas águas
Onde a casa no vale se funde na suja e húmida prisão
Onde a face do carrasco está sempre bem escondida
Onde a fome é torpe, onde as almas são esquecidas
Onde a cor é o negro, onde nada é o número
E hei-de contá-lo e pensá-lo e dizê-lo e respirá-lo
E espelha-lo da montanha para que todas as almas
possam vê-lo
Então erguer-me-ei no oceano até que me comece a
afundar
Mas saberei bem a minha canção antes de começar a
cantar
«O comandante-chefe da revolução cubana morreu esta
noite às 22:29».
Foi assim que o
Presidente Raúl Castro anunciou a morte de Fidel Castro.
«El Comandante»
morreu aos 90 anos.
Emocionado, Raúl
castro terminou o anúncio da morte com a frase:
«Até à vitória,
sempre».
Goste-se ou não
dele, Fidel marca uma era na História do século XX.
Tinha 14 anos
quando Fidel e os seus guerrilheiros desceram da Sierra Maestra para mostrarem
ao mundo que Cuba, a América Latina, não mais seria o quintal e o bordel da
mafia americana.
A vitória
daquelas gentes sobre os americanos foi a de um David contra Golias.
Ficou-me o
fascínio, o lugar da utopia, a marca de um imaginário revolucionário que
perdura.
No que a Cuba
diz respeito, há alguns conflitos comigo mesmo, o coração, as razões, mas já
estou velho para mudar.
SAUL DIAS (pseudónimo de Júlio Maria dos reis pereira,
Vila do Conde, 1902-1983).
Engenheiro civil, artista plástico magnífico, Júlio é
autor duma obra poética que injustificadamente ficou um pouco na sombra da do
desmesurado José Régio, seu irmão. Saul Dias é um poeta contido, que capta com
a humildade dos grandes observadores momentos essenciais, por vezes terríveis,
por vezes jubilosos, da vivência humana. Contenção e tensão ilustradas pelos
títulos dos seus livros.
Os
antologiadores chamam a este poema de Saul Dias: um muito lógico café jazz
surrealizado em 1934.
Legenda: Músicas
e Mulheres no Espaço, pintura de Saul Dias
Vim a ler as primeiras dezenas de páginas de Depois do Fim de Paulo Mourão dentro de
um comboio que avançava à chuva, com aquela melancolia dos comboios que avançam
na chuva, não fosse 2016 já ter transformado a melancolia noutra coisa, numa
espécie de congestão do planeta.
O Dia de Ação de Graças apanha-me num período
prolongado de solidão, onde se inscreve por vezes uma inquietação que arrasto
ao longo de dezembro, mas, infelizmente, sem efeitos práticos. De manhã dou de
comer aos gatos, pego nas minhas coisas em silêncio e depois ponho-me a caminho
da Sexta Avenida até ao Café’Ino, sentando-me na mesa do canto habitual, a
beber café, a fingir escrever, ou a escrever mesmo a sério, com mais ou menos
os mesmos resultados discutíveis. Evito compromissos sociais e, com
determinação, faço planos para passar as férias sozinha. Na véspera de Natal
ofereço aos gatos uns bonecos com a forma de ratos, cheios de erva-gateira, e
saio sem destino para a liberdade da noite, acabado por chegar a um cinema
perto do Hotel Chelsea, onde passava o filme Millenium 1: Os Homens Que Odeiam as Mulheres, em sessão tardia.
Compro o bilhete, tomo um café duplo e peço um pacote de pipocas biológicas
numa pastelaria da esquina, e sento-me depois no cinema numa das filas de trás.
Apenas eu e um grupo de ociosos, confortavelmente isolados do mundo, saboreando
o nosso próprio conceito de bem-estar num feriado, sem prendas, sem Menino
Jesus, sem fitas prateadas ou azevinho, apenas a sensação de uma completa
liberdade. Gostei do filme. Já tinha visto a versão sueca sem legendas, mas
ainda não tinha lido os livros, por isso agora conseguia perceber o enredo e
perder-me na paisagem sombria da Suécia. Já passava da meia-noite quando voltei para casa.
No dia 11 de
Junho de 2014, em Olhar as Capas, publicámos a capa de Tomás, Por Ele Mesmo, uma antologia, organizada por
Orlando Neves, de alguns dos milhares de disparates que Tomás bolsou, em
discursos patéticos, enquanto presidente da ditadura.
Na etiqueta
Américo Tomás, coluna da direita deste blogue, encontrarão as restantes fotografias.
Muito tempo para
percorrer as escassas 78 páginas do precioso livrinho.
Assim aconteceu
por uma mera medida de higiene.
Mas chegámos ao
fim.
E ainda
acrescentamos três recortes sobre o triste almirante.
O primeiro, o Ponto
Crítico do jornalista Álvaro Guerra, publicado no República de 31 de
Julho de 1972:
Outro, um
recorte do Notícias da Amadora de 20 de janeiro de 1975, em que a censura entendeu
cortar dado o seu ridículo:
O último recorte
é do editorial do semanário O Jornal de 12 de Outubro de 1978, referindo
a autorização que o Presidente Ramalho Eanes dera para que Américo Tomás
pudesse regressar a Portugal:
Eu tenho sobre a história uma ideia que está longe de
ser a mais frequente. Penso que, quem faz a história, não é o governo de uma
nação. Sou eu, a vizinha do lado e o merceeiro que está estabelecido com loja
na esquina da rua. É o par de namorados que passa de lambreta ou o operário que
vai para a oficina com a malinha do almoço. É o poeta, é o pensador, é o
cientista, é tudo, toda a gente, a que sai e a que fica em casa, todos, todos,
excepto os que compõem o governo. Esses só têm uma atitude permanente, que é,
atónitos, solucionarem, ou verdadeiramente, ou falsamente, os problemas que lhe
são impostos.
Uns olhos que me olharam com demora,
não sei se por amor se caridade,
fizeram-me pensar na morte, e na saudade
que eu sentiria se morresse agora.
E pensei que da vida não teria
nem saudade nem pena de a perder,
mas que em meus olhos mortos guardaria
certas imagens do que pude ver.
Gostei muito da luz. Gostei de vê-la
de todas as maneiras,
da luz do pirilampo à fria luz da estrela,
do fogo dos incêndios à chama das fogueiras.
Gostei muito de a ver quando cintila
na face de um cristal,
quando trespassa, em lâmina tranquila,
a poeirenta névoa de um pinhal,
quando salta, nas águas, em contorções de cobra,
desfeita em pedrarias de lapidado ceptro,
quando incide num prisma e se desdobra
nas sete cores do espectro.
Também gostei do mar. Gostei de vê-lo em fúria
quando galga lambendo o dorso dos navios,
quando afaga em blandícias de cândida luxúria
a pele morna da areia toda eriçada de calafrios.
E também gostei muito do Jardim da Estrela
com os velhos sentados nos bancos ao sol
e a mãe da pequenita a aconchegá-la no carrinho
e a adormecê-la
e as meninas a correrem atrás das pombas
e os meninos a jogarem ao futebol.
A porta do Jardim, no inverno, ao entardecer,
à hora em que as árvores começam a tomar formas estranhas,
gostei muito de ver
erguer-se a névoa azul do fumo das castanhas.
Também gostei de ver, na rua, os pares de namorados
que se julgam sozinhos no meio de toda a gente,
e se amam com os dedos aflitos, entre cruzados,
de olhos postos nos olhos, angustiadamente.
E gostei de ver as laranjas em montes, nos mercados,
e as mulheres a depenarem galinhas e a proferirem palavras
grosseiras,
e os homens a aguentarem e a travarem os grandes camiões pesados,
e os gatos a miarem e a roçarem-se nas pernas das peixeiras.
Mas ... saudade, saudade propriamente,
essa tenaz que aperta o coração
e deixa na garganta um travo adstringente, essa, não.
Saudade, se a tivesse, só de Aquela
que nas flores se anunciou,
se uma saudade alguém pudesse tê-la
do que não se passou.
De Aquela que morreu antes de eu ter nascido,
ou estará por nascer - quem sabe? - ou talvez ande
nalgum atalho deste mundo grande
para lá dos confins do horizonte perdido.
Triste de quem não tem,
na hora que se esfuma,
saudades de ninguém
nem de coisa nenhuma.
Para além da
restante e variada obra de António Gedeão, é muito importante conhecer as Memórias
do professor e cientista Rómulo de Carvalho, do poeta António Gedeão, um livro
a todos os títulos notável que, volta e meia, visito e onde, folheando ao
acaso, me perco e me delicio numa escrita cheia de graça, num português
modelar.
Um livro
simples, quero ser muito simples, repleto de amor e admiração:
Não é, pois uma
biografia exaustiva, repleta de datas e acontecimentos que tornariam, seguindo
a minha intenção, a escrita dura e a informação espessa. Este livro não
pretende ser objecto de estudo mas sim um espreitar documentado, embora
simples, da sua longa vida. Refiro aqui alguns trechos mais significantes
enquanto homem de ciência, professor e poeta. Fases de uma vida intensa.
Intervalos da existência de alguém que muito amei.
Quero ser
simples, quero ser muito simples. Gostaria que todos compreendessem que
acredito totalmente no poder das palavras e nos seus arranjos finais, esses
tais que formam as frases. Nada de rebuscado, poucas sentenças e o que mais me
nascer do espírito e o que mais me vier ao pensamento. Acredito no fervilhar
das emoções que podem ser traduzidas em páginas e páginas de leitura. Acredito
na simplicidade da transmissão do meu pensamento que, desejo, vá ao encontro de
todos. Afasto a sofisticação palavrosa que não deixa nem ler nem compreender o
que se leu.
Por estes dias,
e outros, irei deixando, aqui, pequenos extractos que possibilitem um outro
conhecimento sobre este português notável.
Eu, que me
comovo por tudo e por nada, assim fiquei ao sair da Exposição que assinala o
centenário do nascimento do professor, pedagogo, cientista, Rómulo de Carvalho,
do poeta António Gedeão, que está patente na Biblioteca Nacional, de 12 de
Outubro de 2006 até 6 de Janeiro de 2007.
Chama-se a
exposição António é o meu nome, e mostra parte do espólio do autor,
doado pela família.
Do que se vê,
ressalta a ideia de um homem extremamente organizado e rigoroso, gostando das
mais ínfimas coisas, coleccionando tudo o que lhe chamava a atenção e que,
por isto ou aquilo, entendia guardar.
Fazia álbuns de
fotografias das viagens e levava para casa as mais improváveis coisas, como a
pena de um pombo encontrada em Trafalgar Square.
Coleccionava
bilhetes de transporte, de museus, de espectáculos, postais e outras coisas que
os humanos consideram inúteis ou absurdas.
No espólio
encontra-se uma carta do compositor Alain Oulman a solicitar-lhe autorização
para musicar o poema Calçada de Carriche e, ao mesmo tempo, dando a
conhecer que fizera alguns cortes, mas que não adulteravam o sentido do poema.
Outra das suas predilecções
era álbuns com fotos da família que ele próprio organizava e encadernava com
tecidos floridos.
Tecidos
semelhantes àquele que o meu avô utilizou para encadernar a Fanga do
Alves Redol.
Adorava dar
aulas e, se não tivesse sido professor, gostava de ter sido marceneiro. Foi ele
que construiu toda a mobília que se encontrava no seu escritório, desde a
secretária às estantes.
Um pouco como o
meu pai. Todo o mobiliário do escritório/biblioteca da casa onde nasci, foi ele
que concebeu. Desde uma escrivaninha às estantes e uma mesa para o meio da sala onde se bebia café e demais bebidas.
Parte dessas
estantes vieram aqui para casa. Por impossibilidade de espaço não pude trazer
todas e isso deixou-me algum desgosto porque, nos tempos livres do meu pai, as
vi nascer. Eram parte da minha vida.
Os cadernos em
que Gedeão escreveu a sua variada obra, numa letra desenhada e miudinha,
lembram os cadernos onde o meu avô escreveu as traduções que fez dos livros de
Anatole France.
Olha-se toda a
exposição, e ressalta a figura que Rómulo de Carvalho/António Gedeão foi: um
estupendíssimo professor, um belíssimo poeta, um príncipe do Humanismo.
É muito
importante que, para além da obra, se olhem exposições como esta. Ficamos com uma
ideia mais abrangente dos autores que amamos.
Há 110 anos
nascia Rómulo de Carvalho, também conhecido por António Gedeão.
Foi um dos mais
notáveis portugueses do século XX, um homem global e total, uma figura que
se inscreve no passado, que agiu com a consciência da utilidade ao próximo
enquanto viveu e que sempre se preocupou em perspectivar o futuro, no dizer
de Cristina Carvalho.
Neste dia é
celebrado o Dia Nacional da Cultura Científica.
Em 1996, o
Ministro da Ciência e Tecnologia, José Mariano Gago, determinou que o dia 24 de
Novembro fosse de homenagem a Rómulo de Carvalho como grande professor e
divulgador da ciência no nosso País.
Segundo as suas
palavras, este dia deve ser «momento privilegiado, todos os anos, de
balanço, de reflexão e de acção sobre o papel do nosso conhecimento no nosso
futuro».
O cidadão Rómulo
de Carvalho numa votou nas eleições de Salazar e Caetano e nas de Abril votou
sempre em branco.
Considerava-se
um homem de esquerda, um comunista sem partido.
Rómulo de Carvalho/António Gedeão, Príncipe Perfeito
Cristina
Carvalho
Colecção Memória
das Letras nº 1
Editorial
Estampa, Lisboa, Outubro de 2012
Este é um breve encontro numas linhas escritas em
algumas páginas. Tudo o que eu possa afirmar e informar, ainda que com muitas
omissões, sobre este eminente professor, pedagogo, historiador, poeta, é que
foi um Homem do Renascimento. Dum outro renascimento, o do século XX.
Quem foi, de quem nasceu, como cresceu, que desejos,
que impulsos, que transcendência foi essa que o iluminou, tudo o que realizou e
onde trabalhou, o que deixou dito, o que deixou feito, o desejo de ser útil, a
vontade, a vida, tudo dito e escrito será nada ou quase nada.
O seu dia a dia foi de trabalho, de pesquisa, de
investigações demoradas e de criação. Incansavelmente. Essa vontade da ciência,
da sua divulgação e do ensino, dentro do que foi possível, cumpriu-se. A
disciplina, as regras e o método foram a orientação de toda a sua vida. A
compreensão da atitude para com o próximo e o espírito de dádiva que marcou o
longo percurso da vida pessoal, familiar e profissional, desenharam um traçado
permanente. A estética, a beleza, o deslumbramento, o intangível acorde de um
outro mundo – o da poesia – envolveram-no e tornou-se realidade.
Também quero referir o quanto me foi difícil separar
da figura de meu pai enquanto escrevi esta biografia. Tentei distanciar-me mas
tenho a certeza que não consegui. Não me foi possível. Por isso, algumas vezes
escrevi de um modo muito mais íntimo; por isso, algumas vezes afastei-me e a
temperatura baixou. Preferi sempre o tom arrebatado e sentimental, que, embora,
contido, nunca foi forçado.
Talvez estranhem, senhores, tanto elogio, tanta
admiração, tanto entusiasmo, tantas são as palavras que transbordam das folhas
deste livro. Mas i que é que se pode dizer de um homem que
Tudo fiz por
amor, a única força poderosa capaz de congraçar as pessoas e as coisas numa
felicidade possível.
Atravessei a
existência sempre com a surpresa nos olhos, a amargura no rosto, a tristeza no
íntimo.
Em Portugal,
segundo um estudo Credit Suisse Research Institute, citado pela TSF, existem 54
mil milionários e três pessoas com mais de mil milhões de euros, o que dá mais
1300 milionários do que em 2015.
O mesmo estudo
revela que, abaixo do limiar da pobreza, vive cerca de 20% da população.
Num poema de Eduardo
Guerra Carneiro em Algumas Palavras:
Horas vieram certas horas
chegaram com amigos certos
Sei lá agora Sei que partem os amigos
e se vão para longe Não sei deles
Viajam alegres sem dinheiro certo
Outros que não vão morrem na guerra
que nos fere e dói que mais não seja
por ser guerra em vão.
Guerra Colonial.
A imensa
tragédia de uma geração, de um país.
E há guerras que
não acabam nunca.
Ou como escreveu
António Lobo Antunes:
Pode esquecer-se a guerra, mas ela não nos esquece.
Deu cabo da nossa juventude e há-de dar cabo da nossa velhice.
Segundo uma
investigação dos historiadores Miguel Cardina e Susana Martins, citado pela Lusa,
o número de militares do Exército Português que desertaram entre 1961 e 1973
ultrapassou os oito mil.
Este número, baseado em fontes militares, é um número
que peca por defeito e refere-se ao período entre 1961 e 1973. É bastante acima
de oito mil e é um número importante porque, até agora, não tínhamos dados sobre
o pessoal já incorporado e mostra que a deserção é um fenómeno mais complexo do
que que aquilo que se considerava.
Temos dados que indicam que entre 1967 e 1969 cerca de
dois por cento dos jovens que são chamados à inspeção foram refratários. Este
número é certamente superior ao número dos desertores. Os faltosos são aqueles
que nem sequer se apresentam à inspeção. Dados de 1985 do Estado-Maior do
Exército indicam que cerca de 200 mil terão abandonado o país. Na década de
1970, cerca de vinte por cento dos jovens que deveriam fazer a inspeção já não
se encontravam no país, refere Miguel
Cardina.
Segue-se a reprodução
de um artigo de João Paulo Guerra publicado, em Abril de 1999, no Diário
Económico:
De acordo com dados oficiais do Estado-Maior General
das Forças Armadas, morreram nas guerras coloniais de Angola, Guiné e
Moçambique 8.831 militares portugueses – 3.455 em Angola, 3.136 em Moçambique e
2.240 na Guiné. Segundo a mesma fonte, 4.280 militares (48,5%) morreram em
consequência directa de acções de combate e 4.551 (51,5%) em acidentes diversos
nos teatros de operações. Em 1974, já depois do 25 de Abril e até às
assinaturas dos diversos acordos de cessar-fogo, ainda morreram 530 militares
portugueses nas colónias, 159 dos quais em acções de combate.
De acordo com a Resenha Histórico-Militar, publicada
pelo Estado-Maior do Exército, as Forças Armadas sofreram nos três teatros de
guerra 27.919 feridos, 15.452 dos quais em acções de combate (55,3%). A
Associação dos Deficientes das Forças Armadas e o Departamento de Psicoterapia
Comportamental do Hospital Júlio de Matos calculam que entre 30 mil e 100 mil
combatentes ficaram a sofrer de distúrbios pós-traumáticos do stress de
guerra.
Entre 1961 e 74 foram recenseados pelas Forças Armadas
1.140.000 mancebos para prestarem serviço militar, dos quais foram incorporados
e mobilizados para a guerra 820 mil (72%). Portugal manteve, em média, durante
os anos de guerra 55.029 militares em Angola, 31.910 em Moçambique e 20.876 na
Guiné.
Segundo dados oficiais, os faltosos e refractários
atingiram em cada ano 18% do contingente, em média, constituindo a emigração o
principal destino de tais jovens. As estatísticas oficiais referem que o número
de desertores dos três teatros de guerra foi de 181 – 101 de Angola, 59 da
Guiné e 21 de Moçambique.
Sempre que há uma necrologia que me interessa, procuro no Google e na imprensa local mais dados, sobre pessoas há muito esquecidas. A morte costuma lembrá-los por breves dias.
Tenho uma secretária bonita, mas prefiro trabalhar na
cama, como se estivesse a convalescer num poema de Robert Louis Stevenson. Uma
zombie otimista apoiada por almofadas, produzindo páginas de fracos resultados –
ainda não amadurecidos ou já amadurecidos demais. De vez em quando escrevo
directamente no meu pequeno computador, olhando saudosamente para a prateleira
onde está a minha velha máquina de escrever, ainda com a sua velha fita, junto
a um processador de texto obsoleto da marca Brother. Uma fidelidade irritante impede-me de os pôr no lixo.
Depois há as anotações nos cadernos, os seus conteúdos sempre a apelar a algo
em mim – confissões, revelações, inumeráveis variações do mesmo parágrafo – e montes
de guardanapos rabiscados com tiradas incompreensíveis. Frascos de tinta secos,
pontas de canetas calcificadas, recargas de canetas há muito desaparecidas,
lapiseiras sem mina. Os escombros de um escritor.
O Papa Francisco
autorizou todos os sacerdotes a manterem definitivamente a capacidade de
absolverem as mulheres que fizeram um aborto, disposição que devia vigorar
apenas durante o ano jubilar da misericórdia, que terminou no domingo.
Para que nenhum obstáculo se interponha entre o pedido
de reconciliação e o perdão de Deus, concedo a todos os padres, a partir de
agora, a faculdade de absolver o pecado do aborto.
Aos 90 anos,
faleceu hoje Maria Eugénia Varela Gomes - figura marcante da resistência
antifascista e da solidariedade com os presos políticos no tempo da ditadura.
Em 1962 raptada
e presa pela PIDE, por alegado envolvimento no golpe de Beja. É mantida isolada
desde 6 de Janeiro até meados de Abril.
De 13 a 19 de Janeiro é submetida a tortura do sono, numa acção coordenada pelo
chefe de Brigada Mortágua e chefiada pelo inspector Pereira de Carvalho.
Cumpre em Caxias
um período de prisão até 27 de Junho de 1963.
Mensagem de
Maria Eugénia Varela Gomes, escrita na tábua de um armário da prisão, e que
está reproduzido no livro Contra Ventos e Marés:
Aqui esteve presa Maria Eugénia Sequeira Varela Gomes,
mulher do Capitão varela Gomes, acusada, ao que parece, de ter colaborado na
Revolução do 1º de Janeiro de 1962. O meu marido, que ficou gravemente ferido,
está preso e doente na Penitenciária. Temos quatro filhos pequenos, 9,8,6, 5
anos; tudo sacrificámos ao nosso País. Mas temos fé de que dias melhores virão
para este povo. Estou aqui isolada desde 6/1/62. Até quando? Quem vier depois
de mim tenha fé porque nada se constrói de grande neste mundo sem mártires; e
não há qualquer razão para que não sejamos nós algumas das vítimas; tenho a
profissão de Assistente Social e sinto-me muito honrada em tal, como vós, em
aqui ter vindo.
O circo é a
vida. A Grande Festa. O sorriso pintado do palhaço e, lá dentro, as lágrimas. O
circo sou eu, és tu, é aquela rapariguinha que vende violetas no Parque Mayer,
é o Adelininho, agora nas estradas da Europa (ainda consultará jornais de
província à procura de «O Gigante», é o porteiro do Monumental e os porteiros
de todos os cabarés, são as raparigas do Bolero e as outras de todos os bares,
de todos os cais. O circo somos nós todos – como dizia antigamente o poeta – ou
ainda mais (digo eu).
Há melhores guitarristas, há melhores intérpretes, até
melhores poetas se nos limitarmos à poesia, mas não há ninguém melhor do que
Bob Dylan a fazer a síntese de tudo isto. Dylan é um poeta e a canção faz parte
da sua poesia.