sábado, 6 de maio de 2017

OLHAR AS CAPAS


Memória

Álvaro Guerra
Capa: Soares Rocha
Editorial Estampa, Lisboa, Novembro de 1971

e  então nasci de súbito confirmando o celerado que disse ser a morte o princípio de toda a vida e eu nela com a memória do meu princípio de toda a vida e eu nela com a memória do meu princípio assim neste visitar-me e reconhecer o rosto e o gesto de uma paragem brusca um espanto de estar aqui a convencer-me de razões para comigo que não sei como se morre nesta guerra discreta guerra de poucos mortos por semana e bondosas senhoras que mandam tantos presentes para os valentes soldados e os mais valentes de todos e os que mais matam vêm de medalha ao peito matar saudades à terra onde estoiram foguetes e sai a banda e é portanto a morte o princípio de tudo este nada estes heróis estas bandeiras pesados como um remorso atrás das impenetráveis paredes de pedras grandes lajes dos túmulos dos reis e dos santos muros de castelos conventos catedrais lendas profecias fantasmas e o mar que é nosso e dele nós e o mar que é nosso e dele nós e as ilhas e as terras e os escravos e a pimenta e o ouro e o marfim pesados como uma herança que havemos de gastar até ao último cruzado que é o preço de tudo quanto perseguimos e está no vento e dentro de nós respira e pulsa nossa ânsia e combate nosso doce e nosso amargo que eu na morte chorei e fritei e clamei pelo nome de liberdade uma suspeita uma vontade que é nossa ainda que emparedados neste passado de névoa ou só quando chegados para demolir as velhas casas da família primeiro os painéis de azulejos o da entrada com o pajem empunhando o bastão e os outros nos vãos das janelas junto aos bancos de pedra com aves e cornucópias de um mundo azul e branco sobre as tábuas carunchosas o pó antigo deslizando para dentro de caves frescas garrafeiras vazias teias de aranha 

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