Memória
Álvaro Guerra
Capa: Soares Rocha
Editorial Estampa,
Lisboa, Novembro de 1971
e então nasci de súbito
confirmando o celerado que disse ser a morte o princípio de toda a vida e eu
nela com a memória do meu princípio de toda a vida e eu nela com a memória do
meu princípio assim neste visitar-me e reconhecer o rosto e o gesto de uma
paragem brusca um espanto de estar aqui a convencer-me de razões para comigo
que não sei como se morre nesta guerra discreta guerra de poucos mortos por
semana e bondosas senhoras que mandam tantos presentes para os valentes
soldados e os mais valentes de todos e os que mais matam vêm de medalha ao
peito matar saudades à terra onde estoiram foguetes e sai a banda e é portanto
a morte o princípio de tudo este nada estes heróis estas bandeiras pesados como
um remorso atrás das impenetráveis paredes de pedras grandes lajes dos túmulos
dos reis e dos santos muros de castelos conventos catedrais lendas profecias
fantasmas e o mar que é nosso e dele nós e o mar que é nosso e dele nós e as
ilhas e as terras e os escravos e a pimenta e o ouro e o marfim pesados como
uma herança que havemos de gastar até ao último cruzado que é o preço de tudo
quanto perseguimos e está no vento e dentro de nós respira e pulsa nossa ânsia
e combate nosso doce e nosso amargo que eu na morte chorei e fritei e clamei
pelo nome de liberdade uma suspeita uma vontade que é nossa ainda que
emparedados neste passado de névoa ou só quando chegados para demolir as velhas
casas da família primeiro os painéis de azulejos o da entrada com o pajem
empunhando o bastão e os outros nos vãos das janelas junto aos bancos de pedra
com aves e cornucópias de um mundo azul e branco sobre as tábuas carunchosas o
pó antigo deslizando para dentro de caves frescas garrafeiras vazias teias de
aranha
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