Nasci na Freguesia da Sé, num prédio alto, que tem o número 7, na rua que
no seu tempo se chamava do “Arco do Limoeiro” e hoje se chama “Augusto Rosa”,
do nome do actor distinto que morava mais abaixo, do lado direito quando se
desce a rua. Vi-o por diversas vezes a sair de casa ou a entrar nela. Bela
figura.
Nasci no quarto andar direito. Meus pais habitavam aí há pouco tempo,
vindos do andar debaixo, do terceiro esquerdo, onde por sinal, nasceu a
Graciete, a minha irmã mais nova. Como entretanto vagou o andar de cima,
alçaram-se os tarecos até lá para se gozar do usufruto da vista do Tejo pelas
traseiras que dali era mais desafogada: Que saudades! “Havia no meu tempo um
rio chamado Tejo”, diz o poeta com os olhos embaciados.
Numa cidade, como Lisboa, onde todas as habitações do passado vão sendo
sistematicamente destruídas, ou desfiguradas, é consolador olhar para o prédio
onde nasci, intacto e bem conservado. É um prédio robusto, que sempre conheci
de tom avermelhado.
Há cerca de um ano, já com setenta e muitos, parei junto do prédio e
não me contive. Empurrei a porta da rua, entrei no vestíbulo e subi a escada
até ao 4º andar, pausadamente, bebendo os ares. E se alguém, lá em cima, fosse
a sair de casa, e eu ficasse ali especado, sem destino, sem justificação?
Desculpar-me-ia com a idade, enganei-me na porta, ou melhor, enganei-me no
prédio, ou melhor ainda, enganei-me na rua porque não há ali nenhum prédio
semelhante àquele. Mas não. Estava tudo em silêncio e eu fui subindo, subindo
sempre. Há setenta anos um rapazito inocente subia aquela escada a correr e
chegava lá a cima com a língua de fora, feliz da proeza. Fui mesmo junto da
porta do lado direito do quarto andar e apeteceu-me parvamente tocar à campainha.
E diria, sabe minha senhora, é que eu nasci aqui (e parava para sorrir) gostava
de rever este lugar. Fiquei pelo desejo, voltei as costas, desci a escada e
regressei à rau. Vinha a passar o eléctrico. Muito tempo gastei na varanda a
ver os eléctricos a subirem e a descrem a rua, a adivinhar se paravam ma
paragem para descer alguém e quantas pessoas desceriam.
Rómulo de Carvalho em
Memórias
Legenda: o prédio
onde nasceu António Gedeão
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