terça-feira, 2 de maio de 2017

É QUE EU NASCI AQUI


Nasci na Freguesia da Sé, num prédio alto, que tem o número 7, na rua que no seu tempo se chamava do “Arco do Limoeiro” e hoje se chama “Augusto Rosa”, do nome do actor distinto que morava mais abaixo, do lado direito quando se desce a rua. Vi-o por diversas vezes a sair de casa ou a entrar nela. Bela figura.
Nasci no quarto andar direito. Meus pais habitavam aí há pouco tempo, vindos do andar debaixo, do terceiro esquerdo, onde por sinal, nasceu a Graciete, a minha irmã mais nova. Como entretanto vagou o andar de cima, alçaram-se os tarecos até lá para se gozar do usufruto da vista do Tejo pelas traseiras que dali era mais desafogada: Que saudades! “Havia no meu tempo um rio chamado Tejo”, diz o poeta com os olhos embaciados.
Numa cidade, como Lisboa, onde todas as habitações do passado vão sendo sistematicamente destruídas, ou desfiguradas, é consolador olhar para o prédio onde nasci, intacto e bem conservado. É um prédio robusto, que sempre conheci de tom avermelhado.
Há cerca de um ano, já com setenta e muitos, parei junto do prédio e não me contive. Empurrei a porta da rua, entrei no vestíbulo e subi a escada até ao 4º andar, pausadamente, bebendo os ares. E se alguém, lá em cima, fosse a sair de casa, e eu ficasse ali especado, sem destino, sem justificação? Desculpar-me-ia com a idade, enganei-me na porta, ou melhor, enganei-me no prédio, ou melhor ainda, enganei-me na rua porque não há ali nenhum prédio semelhante àquele. Mas não. Estava tudo em silêncio e eu fui subindo, subindo sempre. Há setenta anos um rapazito inocente subia aquela escada a correr e chegava lá a cima com a língua de fora, feliz da proeza. Fui mesmo junto da porta do lado direito do quarto andar e apeteceu-me parvamente tocar à campainha. E diria, sabe minha senhora, é que eu nasci aqui (e parava para sorrir) gostava de rever este lugar. Fiquei pelo desejo, voltei as costas, desci a escada e regressei à rau. Vinha a passar o eléctrico. Muito tempo gastei na varanda a ver os eléctricos a subirem e a descrem a rua, a adivinhar se paravam ma paragem para descer alguém e quantas pessoas desceriam.

Rómulo de Carvalho em Memórias

Legenda: o prédio onde nasceu António Gedeão

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