De uma carta de José
Rodrigues Miguéis, datada de 6 de Fevereiro de 1967, para José Saramago:
Devo ir a Portugal, talvez com demora, lá para o Verão. Do meu trabalho
(nas péssimas condições de espírito em que tenho estado, devido à morte da
minha irmã, às condições em que ela
viveu e morreu) refiz todo o final da Salomé, em que não voltarei a mexer. É o meu «monumento fúnebre»! A
impossibilidade de o publicar desanima-me muito. Atirei-me e refundi o Idealista («Baltasar»), também incerto quanto às
resoluções e destino do romance. Estou a sofrer de dúvidas penosas, parece que perdi a «querença» ou «crença» -
os eruditos, os críticos, os sabichões, os falsos-problemáticos (a leitura de Uma
Canção de Camões de Jorge de sena – misto
de erudição assombrosa e de loucura literária – qual é o propósito, qual é a
conclusão daquele tumulto de extraordinária prosa, raciocínio e saber?!) tudo
conspira para me desanimar. Eu próprio estou a ver a minha prosa com outros
olhos: serei realmente, apenas, um
escritor «realista» de outras eras, uma espécie de mini-John dos Passos? e onde
quero eu chegar, que quero (se quero)
provar?... Tenho vontade de escrever outras coisas, de me libertar de esquemas
e doutrinas, e tenho invejas absurdas do J. Luís Borges, de Beckett, de Camus,
do Hesse, do Musil, não sei de quem mais. (Mas de nenhum português!) Vou correndo, montado num cavalo – de cara
virada para o rabo!... só daqui a 40 ou 50 anos se saberá se vali a pena. Eu nunca o saberei! Sinto-me muito só, muito longe e muito insignificante.
Tenho saudades de Portugal, de Lisboa, de uma vadiagem irresponsável,
descuidosa… e o horror de ter 65 anos amachucados de não poder recomeçar. – E agora,
depois do Delfim Santos, morre (de repente? no Rossio? de congestão?...) o T.
Kim (que só vi uma vez na COR, Tr. da Emenda). Todos mais novos do que eu!... –
Se me falta a paciência para a minha tarefa, que mais posso fazer, como
viver? – Já lhe disse que (como V. na sua
carta) sinto muito a sua falta, como da companhia de um irmão mais novo, que se
lembrou de ser Poeta para contrastar comigo – prosaico, irónico, realista,
merdre!
Legenda: capa da 2ª edição de O Milagre Segundo Salomé publicada pela Editorial Estampa em Abril de 1982. A 1ª edição é de 1975, publicada pela Estúdios Cor. Tal como Miguéis sabia, só foi possível a publicação da obra depois da queda da ditadura.
Ainda segundo Miguéis, O Milagre Segundo Salomé «devia constituir o terceiro painel do tríptico iniciado coma A Escola do Paraíso, sendo-lhe o do centro o romance Filhos de Lisboa, ainda hoje por concluir devido às dificuldades de ordem afectiva, pessoal, que me suscita».
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