Uma das muitas vezes que vi Belarmino,
filme-reportagem de Fernando Lopes. foi na noite de 10 de Outubro de 1972, na
televisão a preto e branco da ditadura.
O filme fechava um breve ciclo dedicado ao
cinema português.
Guardo o recorte do Diário Popular desse dia
e onde Baptista-Bastos deixou uma breve evocação:
Era uma vez um
filme à procura de espectadores. Foi há tantos anos que muitos dos que nele
participaram só de vago se recordam: os dias vararam os meses, outra década
surgiu, e o que figurava como imprecação e cólera – é, apenas, a ingénua aspereza
de um protesto. O tempo sugere estas direcções inesperadas: o índice moral
altera-se e as porções de coisas que entendêramos como verdades inarredáveis
irão, sempre, obedecer a outros estatutos, «Belarmino» (é necessário dizê-lo)
nasceu de projectos asseados e da urgência que tínhamos em cometer alguns
desacatos. Gente considerável viu no seu comovido inconformismo um panfleto
contra a fome e o desespero de um homem – quando era, tão-sòmente, a forma
humilde de manifestarmos a incomodidade de termos trinta anos e de viver em
Portugal perfilados na mesma coragem de ser campeões sem murro, poetas sem rima,
cronistas sem coluna, bebedores sem bebida. Amantes sem amor. O filme procurava
os espectadores que jamais teve: estreado num cinema de bairro, apoiado pela
grita e pelo entusiasmo dos cineclubes – essa noite foi um alvoroço e uam
discreta esperança. A peregrinação das conversas, entre o Vává, o Ribadouro e o
Monte Carlo, num esquerdismo festivo que desejava áulicos e trompetistas da
nossa efémera glória, cumpriu-se durante alguns meses. Mas «Belarmino», no Aviz
era a desolação e o riso; um filme à procura daquela gente para quem Belarmino-o-homem
afinal se dirigira sempre: «às vezes as palmas apeteciam-me mais do que as
bolas de Berlim com que enganava a fome.» O recado que queríamos dar foi
apressado, certamente; foi tosco, desajeitado e parvo, talvez. Mas esta noite,
quando a Televisão fizer correr o filme para dois milhões de espectadores, há
uma que estará a dobrar o cansaço para aquém do tempo, a sonhar as mesmas
cóleras e as mesmas imprecações. E, talvez, a pensar que os miúdos desta cidade
se recusam, hoje, a ser campeões. Campeões de quê? Campeões de quê?
Responde lá, ó
Belarmino…
O Helder Pinho foi o responsável por vender
a ideia ao Mário Castrim para que o Belarmino fizesse parte de um dos Encontros do Diário de Lisboa-Juvenil:
O retrato de um
antigo lutador de boxe, Belarmino Fragoso, através das suas deambulações por
uma Lisboa que já não existe. A solidão, o medo e a derrota cruzam-se num filme
que baralha o documentário, a ficção e a entrevista num passeio por antigas
salas de cinema e clubes nocturnos.
Para um catálogo da
Cinemateca dedicado a Fernando Lopes, escreveu Manuel Monzos:
O Fernando fez um dos
filmes que mais estimo e admiro. É o Belarmino. Apesar de não o achar perfeito,
tenho por ele um enorme carinho, não somente pelo filme em si, mas, e talvez
principalmente, por aquilo que pude sentir e aprender do que pode ser também o
cinema.
A primeira vez que o
vi foi há muitos anos, ainda era um miúdo e desde então recordo-o pela estranha
sensação de surpresa e espanto com que fui confrontado com algo tão directo,
tão próximo e tão real.
Foi um dos meus tios
que nos fez vê-lo, a mim e aos meus primos, porque para além do que ele gostava
do filme, trabalhavam nele dois dos seus amigos, o Manuel Jorge Veloso e o
Augusto Cabrita.
Isso para mim já era
divertido, pois através do meu tio eu também os conhecia.
Mas o que realmente me
impressionou foi o próprio filme. Tudo o que nele se encontrava me era próximo.
Era Lisboa, a Baixa e mesmo o meu bairro, a Mouraria. As ruas por onde andava,
as pessoas com quem me cruzava.
Era o estádio do meu
clube e o clube do bairro, a Barros Queirós, o Arcádia, o largo de São
Domingos, onde muitas vezes encontrei Belarmino Fragoso, um tipo a quem eu até
cumprimentava quando nos cruzávamos.
Pela primeira vez via
um filme que me dava a sensação de poder estar lá, era um mundo palpável de
coisas reais e que eu conhecia. E isso era fantástico. Essa possibilidade que
descobria com aquele filme, daquilo que o cinema permitiria.
Nessa época ainda não
pensava vir a dedicar-me ao cinema, mas dos fi lmes que via nos cinemas de
bairro, como o Royal, o Rex, o Liz, o Cine-Oriente, ou nas grandes salas como o
Império, o Monumental, o Tivoli, o Alvalade, o
Avis, os cinemas da
rua dos Condes, nas escolas, salões paroquiais ou no Centro Espanhol, nesses
primeiros filmes que via apenas com a emoção inocente de quem «vê» uma
história, entre eles recordo bem o Belarmino por isso.
Essa capacidade de
usar e reproduzir o real. E também o modo como era feito, mesmo sem perceber
nada disso nessa altura, aquilo usava a montagem de um modo novo e
surpreendente para mim e não tinha nada a ver com
o que eu vira até
então. Aquilo foi forte e marcou-me. Mesmo hoje é um filme que revejo com
enorme carinho e considero dos melhores filmes Portugueses.
Belarmino é um dos Amigos Pensados que o Alexandre O’ Neill
deixou estampado na Feira Cabisbaixa:
TIVESTE jeito, como qualquer de
nós,
e foste campeão, como qualquer de nós.
e foste campeão, como qualquer de nós.
Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.
Também na poesia não se janta nada,
mas nem por isso somos infelizes.
Campeões com jeito,
é a nossa vocação, nosso trejeito.
é a nossa vocação, nosso trejeito.
Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante
– e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.
– e a gente levanta-se, pois pudera, sempre.
Belarmino:
Quando ao tapete nos levar
a mofina;
tu ficarás sem murro,
eu ficarei sem rima,
pugilista e poeta, campeões com jeito
e amadores da má vida.
Quando ao tapete nos levar
a mofina;
tu ficarás sem murro,
eu ficarei sem rima,
pugilista e poeta, campeões com jeito
e amadores da má vida.
Uma das perguntas do
Baptista-Bastos no filme do Fernando Lopes:
- Belarmino, tu és um homem ou um animal?
- Um pugilista é sempre um homem.
Belarmino Fragoso
morreu a 19 de Abril de 1982.
Baptista-Bastos escreveu
a notícia, o requiem por aquele bailarino
em pleno ringue, um movimento perpétuo, um vigor que não se estilhaçava, um
vulcão de poder e de força.
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