O Conquistador
Almeida Faria
Desenhos: Mário Botas
Editorial Caminho,
Lisboa, Abril de 1990
Acreditei durante muito tempo ter vindo ao mundo de um modo diferente
de toda a gente. Foi minha avó Catarina – e as avós nunca mentem – quem me
meteu esta ideia na cabeça. Costumava contar-me que, num dia de nevoeiro, de
manhã cedo, apesar do nevoeiro, o faroleiro João de Castro tinha ido à praia da
Adraga apanhar polvos, quando deu comigo metido num ovo enorme, com a cabeça,
as pernas e os braços de fora.
Como testemunhas presenciais minha avó citava um cavaleiro maneta,
mestre equestre, que para ali ia montar acompanhado pelos seus três peões de
brega, recrutados entre os mais aparvalhados das aldeias, Eles e o faroleiro assistiram
estremunhados ao estranhíssimo espectáculo. E os cinco disputaram entre si quem
iria ficar comigo. A meio da discussão foram atacados por uma cobra-marinha que
estava a guardar-me. Mas João de castro, com a lança que lhe servia para
espetar os polvos entre as rochas, cortou-lhe a cabeçorra diabólica. Assim conquistando
o direito à minha posse.
Este faroleiro, de aqui em diante meu pai, vivia com a mulher. Joana
Correia de castro, no cabo da Roca, e por não terem filhos lhe interessava
ficar com o enjeitado, quase normal uma vez saído da casca. E lá me levou ao
colo, ora ao colo ora às costas, por atalhos e a corta-mato, até às pedregosas
alturas da Roca, na esperança de não encontrar ninguém mais, para não ser
obrigado a explicar quem era a criança a chorar esfomeada. Nunca na vida meu
pai desmentiria a sogra, que não lhe perdoava a pobreza nem o ter-lhe roubado a
única filha, três vezes mais nova que ele. E Joana, minha mãe para todos os
efeitos, deve ter gostado desse filho-mistério que primeiro a assustou porque
tinha seis dedos no pé direito, e logo a comoveu por vir roxo de frio, mal
embrulhado numa capa impermeável.
Por muito que meus paus receassem irritar os ânimos difíceis de
Catarina ao porem em causa o seu relato, não compreendo que o não fizessem mais
tarde, caso fosse outra a verdade. Sempre subscreveram a versão da minha avó, e
aos poucos me acostumei a ser uma ave rara.
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