sábado, 13 de maio de 2017

O QUE MAIS ME INTERESSA


Está provado que não nasci para falar a doutores. Um dos meus professores viu direito quando, no meu exame de admissão ao estágio, lamentou que a minha linguagem nem sempre fosse a mais conveniente. O princípio do mal está em mim., que sou saloio por dentro; saloio, não: cabreiro. E depois deu asas a isto o facto de eu me ter feito homem entre camponeses e pescadores e ter tido sempre o cuidado de falar como eles, para estarmos todos à vontade. Ao par do que aí fica, acontece que venho de lavradores, jardineiros e comerciantes; tudo gente de capa honrada mas agreste. O que não quer dizer que a cepa seja de não dar flor: tenho um primo que guarda ovelhas e as beija e as trata como suas irmãs; um São Francisco em bruto.
Pois está-se mesmo a ver que é tanto à ascendência como à convivência que eu devo a condição de não saber falar a doutores. Isto é uma qualidade e um defeito: ao pé deles fico apagado, e escuso de ter razão, porque até a razão tem de andar bem vestida para entrar nas salas; ao pé dos simples tenho a certeza de que sou entendido. São as palavras deles que me servem para contara as minhas coisas. E afinal (não desfazendo nos grandes, muito menos nos grandes que merecem a minha admiração ou a minha estima) interessa-me bem mais o amor dos pequenos do que a consideração dos grandes.

Sebastião da Gama em Diário

Sem comentários: