Está provado que não nasci para falar a doutores. Um dos meus
professores viu direito quando, no meu exame de admissão ao estágio, lamentou
que a minha linguagem nem sempre fosse a mais conveniente. O princípio do mal
está em mim., que sou saloio por dentro; saloio, não: cabreiro. E depois deu
asas a isto o facto de eu me ter feito homem entre camponeses e pescadores e
ter tido sempre o cuidado de falar como eles, para estarmos todos à vontade. Ao
par do que aí fica, acontece que venho de lavradores, jardineiros e
comerciantes; tudo gente de capa honrada mas agreste. O que não quer dizer que
a cepa seja de não dar flor: tenho um primo que guarda ovelhas e as beija e as
trata como suas irmãs; um São Francisco em bruto.
Pois está-se mesmo a ver que é tanto à ascendência como à convivência
que eu devo a condição de não saber falar a doutores. Isto é uma qualidade e um
defeito: ao pé deles fico apagado, e escuso de ter razão, porque até a razão
tem de andar bem vestida para entrar nas salas; ao pé dos simples tenho a
certeza de que sou entendido. São as palavras deles que me servem para contara
as minhas coisas. E afinal (não desfazendo nos grandes, muito menos nos grandes
que merecem a minha admiração ou a minha estima) interessa-me bem mais o amor
dos pequenos do que a consideração dos grandes.
Sebastião da Gama em Diário
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