Carta de Jorge de
Sena, datada de 9 de Março de 1969, para Eugénio de Andrade:
Trago muitas e cruciantes saudades. Não direi da minha casa que me
pareceu encolhida e desconfortável; não direi do país que me entristeceu
profundamente, com o seu ar de decadência enxovalhada, a amargura dos melhores,
e a resignação dos pequenos (uma mãe que se lamentava de o filho estar mobilizado
em África, logo acrescentou, com um sorriso de consolada satisfação que ele
ganhava oito contos…) mas dos amigos que é quase impensável para mim que não
possa rever a bel-prazer. Agora é que compreendo a diferença de quando parti
para o que seria uma ausência de quase dez anos: oficialmente eu não partia, e
em conformidade não me despedira. Desta vez, foi diferente. E não sei se não é
pior do que antes, de um ponto de vista geral: é que não havia saída para o
país, mas esperava-se que um dia haveria, e presentemente é claro, demasiado
claro, que a não há, e que ninguém ou quase ninguém sequer a deseja. Como
viveria quem se habituou a apenas a sobreviver?
A frase da mãe do
soldado fará parte do poema «Uma vez eu…»,
em que Jorge de Sena refere também as fanfarronadas de António Spínola, mais o
seu livro «Portugal e o Futuro», bem
como os acontecimentos do 16 de Março.
O poema escrito em Santa
Bárbara está datado de 21 de Abril de 1974 e faz parte de «40 Anos de Servidão».
É este o poema:
I
Uma vez eu, chegando a Portugal
após muitos anos de ausência minha e alguns
de guerras africanas, encontrei uma vizinha
muito estimável que era casada com
um operário categorizado e antigo republicano.
O filho dela estava nas Áfricas, arriscando
a vida dele e a dos outros em defesa
do património da pátria de alguns (muito mais
que das gerações brancas que vivem nas Áfricas).
Eu condoí-me, todo embebido de noções políticas.
E ela, com um sorriso resignado, respondeu-me:
- Pois é, mas ele está a ganhar tão bem!
II
O general combateu heroicamente nas Guinés
(todos os generais são heróicos porque não se arriscam
todos os dias como os soldados, mas só às vezes
quando visitam a »frente» para mostrar aos soldados
que têm colhões como eles, e os soldados acreditam),
foi largamente louvado pelo governo, muito promovido,
e começou a pensar que aquilo não levava a nada
e era mesmo um mau negócio para a União Fabril
(e oq eu é mau para a CUF é mau para a pátria, é
claro).
Pensou então que a guerra não se ganhava,
que o país não aguentava (será que alguma vez
havia pensado nessas evidências desde o princípio?),
e que a sua popularidade entre os soldados da Guiné
correspondia a um papel salvador da pátria
para tirá-la da encrenca. Ressuscitou
a ideia da semi-federação, agitou
os imperialismos brasileiros em relação à África dita
portuguesa
(que são mais velhos que o Brasil como nação),
E botou livro saudado como enorme êxito nacional e
internacional.
Mas a extrema-direita – ou sejam aqueles
que acabam por acreditar eles mesmos nos mitos que
impõem aos outros
- não gostou. Os jovens centuriões estavam todos
de olhos fitos na imagem paterna, de monóculo, herói
das Guinés e mais partes. E pensaram em pôr-se
pacificamente em marcha como no 28 de maio
que assim ganharam contra a República há cerca de
cinquenta anos.
Mas era dia de futebol. Os soldados estavam todos
Preocupados em quem ganharia o jogo, e tristes
De o perderem na televisão. Outros centuriões
Acharam que não havia chegado o momento.
E assim as colunas motorizadas encontraram-se
frente a frente
ao pé dos Alguidares de Baixo,
e os revoltosos deixaram-se prender entre vivas
ao Benfica, ao Sporting, ou outro clube qualquer.
Na estrada, cruzavam-se as colunas motorizadas,
É tristíssimo isto, por certo, de todos os pontos de
vista.
Mas – quem há-de fazer crer a um povo
usado por séculos que os acontecimentos
(para que não o ouvem nem consultam) lhe dizem
respeito? Se o livro do general é um grande êxito,
quem há-de convencer esse povo de que lhe diz
respeito uma questão de salvar-se o que está
para ver como é que fica? O povo, como pode,
sobrevive, entre futebol e emigração. O resto
lê com esperança, com raiva, ou com desânimo,
o livro do general que, silencioso, não comenta
dos jovens centuriões que se precipitaram.
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