Continuamos com a carta, datada de 8 de Maio de 1967, que José Saramago enviou a José Rodrigues Miguéis.
Depois de lhe
comunicar que esteve uns dias em Paris avisa que vai mudar de registo e
escreve:
Sabe que fui promovido a crítico literário? E da
Seara, ainda por cima, que é coisa fina. Eu conto: Aqui há meses telefona-me o
Costa Dias a dizer que queria falar comigo. Que era, que não era, e vai daí vem
o convite. Abri a boca de puro pasmo. Encontrámo-nos, e eu, honesto e perplexo,
modesto e desconfiado, dou as minhas razões Contra: falta de preparação e de
grau universitário, pouco tempo disponível ou nenhum, independência ideológica,
etc., etc. A nada o Costa Dias se moveu. Que eu sou um sujeito assim, que eu
sou um sujeito assado, e por aí fora. Acabei por aceitar. E lá estou. Veremos
por quanto tempo. É que, de mim para mim, assentei que à mais pequena pressão
ou torcidela de nariz, tiro de lá os pés. Para o último número, escrevi duas
críticas, uma das quais a Censura deitou abaixo. Bom princípio.
Num texto
publicado, 29 de Outubro de 2010, aqui no Cais do Olhar, fazíamos um pequeno
apanhado das críticas que Saramago escreveu para a Seara.
Copiamos esse
apanhado:
José Saramago
publica a sua primeira crítica na “Seara Nova” no nº 1459
referente a Maio de 1964, e a última aparece no nº 1476, referente a Outubro de
1968.
Numa crítica a “O
Ser e o Ter” de José Marmelo e Silva, e publicada na “Seara
Nova” nº 1472, referente a Junho de 1968 escreve:
“José Marmelo e Silva há-de vir a dar muitas dores de
cabeça aos historiadores da nossa literatura. Entretanto, vai incomodando os
críticos encartados ou aqueles que, como nós, sem carta nem diploma, vão
fazendo o que podem para dar conta do que lêem aos leitores de boa fé.”
José Saramago,
para além das acima referidas, colocou como “assustada condição” não
fazer crítica de livros de poesia.
Enquanto crítico
da “Seara Nova” debruçou-se duas vezes sobre livros de
Agustina Bessa Luís: “As Relações Humanas” e “Homens
e Mulheres”. Numa chamou “génio” a Agustina, noutra
disse que Agustina “corre o risco muito sério de adormecer ao som da
sua própria música”
Quem não achou
piada alguma à história foi José Gomes Ferreira, possivelmente, por entender
que José Saramago seria a última pessoa no mundo a chamar “génio” a
Agustina Bessa Luís.
A 2 de Janeiro
de 1968 escreve José Gomes Ferreira no 4º volume dos seus “Dias
Comuns”:
“Quase todos os críticos têm chamado génio a Agustina
Bessa Luís (verdade seja que alguns depois se arrependem; Gaspar Simões, Óscar
Lopes, José Régio, sei lá quantos).
Agora, chegou a vez ao Saramago que, no último número
da “Seara Nova”, não resistiu a proclamar: “como é possível não reconhecer e
declarar que se há em Portugal um escritor onde habite o génio (vã esta
palavra, ainda que perigosa e equívoca) esse escritor é Agustina Bessa Luís?”
Abordando um
outro livro, “Eva” de Sá Coimbra, Saramago considera-o, entre
outras coisas, “uma oportunidade perdida” O autor (”sou
um homem do foro e estou habituado à análise critica das provas antes de
condenar…”) dirige-lhe uma carta querendo saber dos porquês da análise
de Saramago. Na volta o crítico diz: “Valerá a pena responder? Então se
eu tenho chamado obra-prima ao livro de Sá Coimbra ele perguntar-me-ia também
porque?" Acaba por colocar o seguinte ponto final na história:
“O ponto final é mesmo um ponto final. Tenho outras
críticas a fazer (mas valerá a pena?) e Sá Coimbra outros romances a escrever.
Marco um encontro a Sá Coimbra para daqui a vinte anos. O mais certo é estarmos
ambos esquecidos. Não nos demos, pois, demasiada importância…”
A última crítica
de José Saramago na “Seara Nova”, aborda dois livros: “O
Despojo dos Insensatos” de Mário Ventura e “O Delfim” de
José Cardoso Pires.
Sobre a crítica
ao livro de Cardoso Pires há-de escrever, a 22 de Julho de 1994, um texto que
consta do Vol. II dos “Cadernos de Lanzarote”:
“Agora eis-me perante os fantasmas de opiniões que
expandi há quase trinta anos, algumas bastante ousadas para a época, como dizer
que Agustina Bessa Luís “corre
o risco muito sério de adormecer ao som da sua própria
música”. Apesar da minha inexperiência, e quanto sou capaz de recordar, creio
não haver cometido grossos erros de apreciação nem injustiças de maior tomo.
Salvo o que escrevi sobre “O Delfim” do José Cardoso Pires: muitas vezes me
tenho perguntado onde teria eu nesse momento a cabeça, e não encontro
resposta…”
Hoje, relida a crítica, percebe-se o espanto de Saramago ao” não saber onde tinha a cabeça” quando se debruçou sobre “O Delfim”.
Conhecendo-se o
Saramago de então, não é fácil encontrar motivos para não ter entendido (?) o
que Cardoso Pires queria com o livro.
Só Saramago nos
poderia responder, e nunca o fez claramente.
Uma boa altura
para lembrar o estafado "ninguém é perfeito!"
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