quinta-feira, 11 de maio de 2017

JÁ LÁ VAI!


Voltamos às Memórias de Rómulo de Carvalho/António Gedeão.

Aos seus tetranetos conta da existência dos guardas-nocturnos:

O residente de um prédio esqueceu-se da chave da porta da rua, ou perdeu-a. Colocava-se junto da porta do prédio, batia as palmas das mãos como se estivesse a aplaudir uma representação teatral. Então uma voz forte gritava “Já lá vai!”.
«Era um homem, um profissional creio que camarário, designado “guarda-nocturno”, que se aproximava fazendo tilintar um vastíssimo molhe de chaves que trazia sempre consigo e que eram as chaves das portas da rua de todos os prédios da área em que trabalhava. Desde o pôr-do-Sol até ao amanhecer, em qualquer hora da madrugada, ao frio, à chuva e ao vento, aquele homem ali estava ao serviço da comunidade. Dormia e trabalhava de noite, juntando uns miseráveis cobres que nem chegariam para se agasalhar e se defender do mau tempo.
Já em finais do século XX, depois de termos ido à Lua, ainda existem guardas-nocturnos. O meu prédio, isto é, o prédio em que moro actualmente, no bairro de Campo de Ourique dessa cidade de Lisboa, na rua Sampaio Bruno nº 18, 3º andar, Direito, tem lá em baixo, na porta da rua, os botões precisos que fazem tocar para todos os inquilinos, e todos os inquilinos têm os seus botões dentro de casa para de lá abrirem a porta da rua. Tudo funciona como deve ser. As campainhas soam e os botões fazem abrir a porta mas… o prédio, ou melhor a rua, tem um guarda-nocturno. Ainda não estou a dizer bem: eu é que tenho um guarda-nocturno. Assim é que está certo. No princípio de cada mês há um homem que vem bater e que responde, quando se lhe pergunta quem é: “é o gurda-nocturno”. Muito dignamente cumprimente quem o acolhe e estende na mão um papel (não um papel qualquer, mas um papel impresso opara o efeito) onde traz o meu nome, escrito à mão, e onde diz quanto tenho de lhe pagar. É o senhor António Nunes, guarda nº 103. Agora (em 1990) pago-lhe 80 escudos por mês. Ele pediu-me 100 mas eu teimei e só lhe dei 80. Estou certo que ele não faz vigilância nenhuma. Quando vem ao prédio só toca para a minha casa que é o último andar. Sobe e desce sem tocar em mais porta nenhuma. É uma distinção que tem para comigo. Sabe que eu sou tolo e não vou perder uma amizade.


Vivemos nesta casa desde Março de 1971.

Passados umas semanas, de a termos alugado,  recebemos a visita do guarda-nocturno da área: se podíamos ajudar com qualquer coisinha.

Tínhamos dificuldades várias e concordámos que lhe poderíamos pagar 10 escudos por mês.

Assim ficou e era uma pessoa que, quando chegávamos de noite a casa, o víamos nas ruas a cumprir o seu serviço.

Uns meses depois do 25 de Abril, não mais apareceu e nunca soubemos o que aconteceu.

Passados alguns anos, já estávamos no euro, apareceu um personagem a dizer que era o novo guarda-nocturno e trazia já a mesada feita: 1,50 euros por mês, mais subsídio de natal e subsídio de férias.

Que havia a dizer ao personagem que na cara trazia escrito de que precisava de umas moedas para arredondar a reforma ou o ordenado.

Assim ficou.

Tal como o guarda-nocturno de António Gedeão, achamos que ele não faz vigilância nenhuma, porque em todos estes anos só o vemos, no princípio de cada mês, quando aparece de papelinho na mão.

- Olhe lá, nunca o vi à noite pela rua – disse-lhe, uma vez, o vizinho do lado, com um sorriso matreiro.

-  Então não havia de andar!... essa é muita boa!...

O prédio tem quinze inquilinos mas ele só tem 4 a dar-lhe qualquer coisinha, precisamente os que ainda se encontram desde a construção do prédio, que, talvez como Gedeão, sejam tolos e não queiram perder uma amizade!...  

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