Voltamos às Memórias de Rómulo de Carvalho/António
Gedeão.
Aos seus tetranetos
conta da existência dos guardas-nocturnos:
O residente de um prédio esqueceu-se da chave da porta da rua, ou
perdeu-a. Colocava-se junto da porta do prédio, batia as palmas das mãos como
se estivesse a aplaudir uma representação teatral. Então uma voz forte gritava “Já
lá vai!”.
«Era um homem, um profissional creio que camarário, designado “guarda-nocturno”,
que se aproximava fazendo tilintar um vastíssimo molhe de chaves que trazia
sempre consigo e que eram as chaves das portas da rua de todos os prédios da
área em que trabalhava. Desde o pôr-do-Sol até ao amanhecer, em qualquer hora
da madrugada, ao frio, à chuva e ao vento, aquele homem ali estava ao serviço
da comunidade. Dormia e trabalhava de noite, juntando uns miseráveis cobres que
nem chegariam para se agasalhar e se defender do mau tempo.
Já em finais do século XX, depois de termos ido à Lua, ainda existem
guardas-nocturnos. O meu prédio, isto é, o prédio em que moro actualmente, no
bairro de Campo de Ourique dessa cidade de Lisboa, na rua Sampaio Bruno nº 18,
3º andar, Direito, tem lá em baixo, na porta da rua, os botões precisos que
fazem tocar para todos os inquilinos, e todos os inquilinos têm os seus botões
dentro de casa para de lá abrirem a porta da rua. Tudo funciona como deve ser.
As campainhas soam e os botões fazem abrir a porta mas… o prédio, ou melhor a
rua, tem um guarda-nocturno. Ainda não estou a dizer bem: eu é que tenho um
guarda-nocturno. Assim é que está certo. No princípio de cada mês há um homem
que vem bater e que responde, quando se lhe pergunta quem é: “é o
gurda-nocturno”. Muito dignamente cumprimente quem o acolhe e estende na mão um
papel (não um papel qualquer, mas um papel impresso opara o efeito) onde traz o
meu nome, escrito à mão, e onde diz quanto tenho de lhe pagar. É o senhor
António Nunes, guarda nº 103. Agora (em 1990) pago-lhe 80 escudos por mês. Ele
pediu-me 100 mas eu teimei e só lhe dei 80. Estou certo que ele não faz
vigilância nenhuma. Quando vem ao prédio só toca para a minha casa que é o
último andar. Sobe e desce sem tocar em mais porta nenhuma. É uma distinção que
tem para comigo. Sabe que eu sou tolo e não vou perder uma amizade.
Vivemos nesta casa
desde Março de 1971.
Passados umas semanas,
de a termos alugado, recebemos a visita
do guarda-nocturno da área: se podíamos ajudar com qualquer coisinha.
Tínhamos dificuldades
várias e concordámos que lhe poderíamos pagar 10 escudos por mês.
Assim ficou e era uma
pessoa que, quando chegávamos de noite a casa, o víamos nas ruas a cumprir o
seu serviço.
Uns meses depois do
25 de Abril, não mais apareceu e nunca soubemos o que aconteceu.
Passados alguns anos,
já estávamos no euro, apareceu um personagem a dizer que era o novo guarda-nocturno
e trazia já a mesada feita: 1,50 euros por mês, mais subsídio de natal e subsídio
de férias.
Que havia a dizer ao
personagem que na cara trazia escrito de que precisava de umas moedas para
arredondar a reforma ou o ordenado.
Assim ficou.
Tal como o guarda-nocturno
de António Gedeão, achamos que ele não faz vigilância nenhuma, porque em todos
estes anos só o vemos, no princípio de cada mês, quando aparece de papelinho na
mão.
- Olhe lá, nunca o vi à noite pela rua – disse-lhe, uma vez, o
vizinho do lado, com um sorriso matreiro.
- Então não havia de andar!...
essa é muita boa!...
O prédio tem quinze inquilinos
mas ele só tem 4 a dar-lhe qualquer coisinha, precisamente os que ainda se
encontram desde a construção do prédio, que, talvez como Gedeão, sejam tolos e não queiram perder uma
amizade!...
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