Uma Noite em Lisboa
Erich Maria Remarque
Tradução: Luís
Coimbra
Edições Saída de
Emergência, São Pedro do Estril, Março de 2016
Demorei-me a olhar fixamente para o navio. Profusamente iluminado, o
barco aguardava fundeado no Tejo. Embora estivesse em Lisboa há já uma semana,
ainda não me habituara à sua iluminação exuberante. Nos países por onde anteriormente
passara, à noite as cidades jaziam escuras como minas de carvão, e uma lanterna
nas trevas era mais temível do que a peste na Idade Média. Eu vinha da Europa
do século vinte.
A embarcação era um navio de passageiros; estava a receber carga. Eu
sabia que o barco tinha partida marcada para a tarde do dia seguinte. À luz
crua das Lâmpadas despidas, caixotes de carne, peixe, conservas, pão e legumes
iam sendo acamados no porão; os estivadores levavam bagagens para bordo,
levantando grades e fardos tão silenciosamente como se nada pesassem. O navio
estava a ser preparado para uma travessia – como a arca no tempo do dilúvio. Era
uma arca. Cada navio que deixava a Europa
naqueles meses de 1942 era uma arca. A América era o Monte Ararat e o nível das
águas enchentes aumentava de dia para dia. Há muito que tinham submergido a
Alemanha e a Áustria, alagavam agora A Polónia e Praga; Amesterdão, Bruxelas,
Copenhaga, Oslo e Paris haviam já sido inundadas, as cidades de Itália tresandavam
de infiltração e nem a Espanha estava a salvo. A costa portuguesa tornara-se na
última esperança dos fugitivos para quem a justiça, a liberdade e a tolerância
eram mais importantes do que a pátria e os meios de subsistência. Portugal era
uma ponte para a América. Quem não conseguisse alcançá-la, estava perdido,
condenado à morte lenta num dédalo de consulados, esquadras de Polícia e
repartições públicas, onde os vistos eram sempre recusados e as licenças de
trabalho e residência impossíveis de se obter, uma selva de campos de
internamento, pesadelos burocráticos, solidão e saudade onde se definhava perante
a indiferença generalizada. Como é habitual em tempos de guerra, medo e
sofrimento, o indivíduo deixava de existir como ser humano; só uma coisa
importava: possuir um passaporte válido.
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