Carta de Jorge de
Sena, datada de 4 de Maio de 1969, para Eugénio de Andrade:
Fisicamente e espiritualmente, estes meses têm sido muito difíceis para
mim. Sofro terrivelmente de saudades da Europa, maiores e piores do que as que
viera sentindo nestes dez anos de ausência, e isso paralelamente coincidindo com
um período de dissensões e canalhices no meu Departamento, com a mediocridade
mais triunfante do que nunca (em grande parte resultado da minha ausência de
seis meses, em que aproveitaram para retomar posições e ascendência). E
coincidindo também com uma vaga de direitismo repressivo na América, capaz de
dar a volta ao estômago mais indiferente (e, ao mesmo tempo, vejo as esquerdas
repetindo estupidamente todos os erros e provocações que, no Brasil, culminaram
na revolução militar com o aplauso da média burguesia que hoje aperta o cinto).
Além disto porque, porque, vindo exausto e enfraquecido, mergulhei num trabalho
insano, os meus nervos estão à flor da pele, e a minha irritabilidade que, na
maior parte dos casos faço por engolir (uma das artes das Américas é refinada:
levar a pessoa a explodir, para ser ela quem tem a culpa… - e nisto os Estados
Unidos são, no convívio, tão canalhas como o Brasil) não podia ser mais
dolorosa e sensível. Tudo isto foi coroado com uma coisa em que não tinha fé,
mas alguma esperança, até pelo desafogo económico que me traria
momentaneamente, e que guardarás para ti, se não é coisa sabida à boca pequena:
eu era o candidato do Diário de Notícias para o magno prémio que foi para o
Torga (por sinal, é a segunda vez que este diabo me rouba um prémio a que não
concorria pessoalmente). E se o não ganhei agora, depois de toda a promoção
propagandística que me rodeou, é evidente que o não ganharei nunca.
Legenda: página do Diário Volume XI em que Miguel Torga
«justifica» ter aceite o Prémio Diário de Notícias que, segundo Sena, lhe
estaria destinado e lhe traria algum desafogo
económico.
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