sexta-feira, 4 de novembro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS

José Saramago ia a São Carlos beneficiando da cumplicidade de um porteiro do teatro, que era amigo de seu pai, e essa era, a partir do galinheiro, a possibilidade , mais de ouvir do que ver, os espectáculos operáticos.

Saramago, numa entrada datada de 30 de Março de 1996, Cadernos de Lanzarote, Volume IV, conta a história:

 

«Naquele tempo eu ia à ópera sem pagar. Um porteiro simpático do Teatro Nacional de São Carlos, bom amigo de meu pai, fazia-me sinal para entrar quando faltavam dois ou três minutos para começar a função e os espectadores pagantes já tinham ocupado os seus lugares. Excitado, nervoso, subia rapidamente as íngremes escadas que levavam ao último andar, aonde chegava com o coração a saltar-me da boca. (A porta que o benévolo guardião fiscalizava não dava acesso à plateia nem aos camarotes, era só para espectadores pouco abonados, os que tinham que contentar-se com as torrinhas, que assim se chama aos camarotes de última ordem, e com o galinheiro, cujo nome já está a dizer tudo.) Como eu era um dos que não deixavam sequer um centavo na bilheteira, o meu lugar tinha de ser o galinheiro, se é que, chegando no último segundo, ainda lá encontrava um sítio para me sentar... Por diabólico castigo, exceptuando os pouquíssimos espectadores que se apertavam na primeira fila, ninguém conseguia ver dali o palco por inteiro. A culpa tinha-o o enorme camarote real (presidencial depois da República) que, começando à altura dos camarotes de primeira ordem, trepava pelo teatro acima, quase alcançando o tecto, onde, praticamente, pairávamos. Quando os cantores, cumprindo as marcações de cena, se deslocavam para o lado escondido, era como se tivessem passado para a outra face da lua. Ouvíamos-lhes as vozes (os entendidos afirmavam que a melhor acústica do São Carlos era a do galinheiro...), mas tínhamos de esperar pacientemente que a continuação do enredo trouxesse outra vez os artistas à nesga de palco visível de onde estávamos. Encimando o camarote presidencial e dificultando ainda mais a visão, havia (e lá continua) uma grande e sumptuosa coroa real, de talha dourada, símbolo que sobrou das monarquias passadas, agora reduzida a mero adorno figurativo. Com propriedade e com rigor, porém, o que víamos não era a coroa na sua plenitude aparente, a que oferecia a sua magnificência e o seu esplendor aos espectadores privilegiados dos camarotes e da plateia. Nós, os do galinheiro, tínhamos de contentar-nos com o reverso dela, a parte de trás, o outro lado, numa palavra, a ausência. Sim, a ausência. Ou porque tinha querido poupar algum dinheiro em madeira e em folha de ouro, ou porque acharam que as pessoas que viriam a sentar-se ali não eram merecedoras de mais consideração, a coroa do Teatro nacional de São Carlos não é uma coroa completa, é três quartos de coroa, ou ainda menos. Lá dentro, amparando a real estrutura, viam-se naquele tempo uns sarrafos mal aplainados, fixados com pregos torcidos, muito pó, teias de aranha, alguma vingativa e republicana ponta de cigarro. Como se alguém, nesses distantes e ingénuos dias, tivesse acendido a luz que haveria de iluminar-me a existência, compreendi que o ponto de vista do galinheiro é indispensável se realmente quisermos conhecer a coroa.

 


Sempre gostei de ópera e das razões desse gosto não consigo encontrar a mínima explicação. Nem por influência do meu pai, caso da música clássica, mas tinha pouco, ou nenhum, gosto, paciência pela ópera.

Nos últimos anos da ditadura, o Teatro São Carlos estabeleceu uma parceria com o Coliseu dos Recreios de modo a que as óperas que eram representadas no São Carlos também pudessem ser vistas na velha sala das Portas de Santo Antão.

Era a possibilidade de um vasto leque da população, sem dinheiro, nem fraque, nem jóias para frequentar São Carlos, pudessem usufruir desses espectáculos, como que, provavelmente, dando seguimento à célebre frase de António Silva de que a ópera é música para operários.

Vezes sem conta, tentei arranjar bilhetes para ir ver as récitas das óperas que do São Carlos desciam até ao Coliseu, mas nunca consegui.

Sabia que os bilhetes eram distribuídos por aqui e por ali e os poucos que restavam eram postos à venda mas desapareciam num ápice.

Pela leitura da Alvorada de Abril do Otelo Saraiva de Carvalho fiquei a saber que a Secção de Actividades Culturais e Recreativas da Academia Militar era uma das entidades a quem eram distribuídos os bilhetes para o Coliseu.


A primeira vez – e única – que entrei no São Carlos foi para assistir à representação de Blimunda, libreto de Azio Corghi e José Saramago, música de Azio Corghi.

Não esquecerei esse dia, mas quanto ao resto estou como Ruy Vieira Nery:

«Gostaria, logo à partida, de deixar claro que o melhor da ópera é o libreto de Corghi e Saramago. No conjunto, um espectáculo sério e interessante, agradável à vista e ao ouvido mas de cuja continuidade no reportório operático, uma vez terminado o ciclo das suas produções iniciais, tenho as maiores e mais fundadas dúvidas.»

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