José
Saramago ia a São Carlos beneficiando da cumplicidade de um porteiro do teatro,
que era amigo de seu pai, e essa era, a partir do galinheiro, a possibilidade ,
mais de ouvir do que ver, os espectáculos operáticos.
Saramago,
numa entrada datada de 30 de Março de 1996, Cadernos
de Lanzarote, Volume IV, conta a história:
«Naquele tempo eu ia à ópera sem
pagar. Um porteiro simpático do Teatro Nacional de São Carlos, bom amigo de meu
pai, fazia-me sinal para entrar quando faltavam dois ou três minutos para
começar a função e os espectadores pagantes já tinham ocupado os seus lugares.
Excitado, nervoso, subia rapidamente as íngremes escadas que levavam ao último
andar, aonde chegava com o coração a saltar-me da boca. (A porta que o benévolo
guardião fiscalizava não dava acesso à plateia nem aos camarotes, era só para
espectadores pouco abonados, os que tinham que contentar-se com as torrinhas,
que assim se chama aos camarotes de última ordem, e com o galinheiro, cujo nome
já está a dizer tudo.) Como eu era um dos que não deixavam sequer um centavo na
bilheteira, o meu lugar tinha de ser o galinheiro, se é que, chegando no último
segundo, ainda lá encontrava um sítio para me sentar... Por diabólico castigo,
exceptuando os pouquíssimos espectadores que se apertavam na primeira fila,
ninguém conseguia ver dali o palco por inteiro. A culpa tinha-o o enorme
camarote real (presidencial depois da República) que, começando à altura dos
camarotes de primeira ordem, trepava pelo teatro acima, quase alcançando o
tecto, onde, praticamente, pairávamos. Quando os cantores, cumprindo as marcações
de cena, se deslocavam para o lado escondido, era como se tivessem passado para
a outra face da lua. Ouvíamos-lhes as vozes (os entendidos afirmavam que a
melhor acústica do São Carlos era a do galinheiro...), mas tínhamos de esperar
pacientemente que a continuação do enredo trouxesse outra vez os artistas à
nesga de palco visível de onde estávamos. Encimando o camarote presidencial e
dificultando ainda mais a visão, havia (e lá continua) uma grande e sumptuosa
coroa real, de talha dourada, símbolo que sobrou das monarquias passadas, agora
reduzida a mero adorno figurativo. Com propriedade e com rigor, porém, o que
víamos não era a coroa na sua plenitude aparente, a que oferecia a sua
magnificência e o seu esplendor aos espectadores privilegiados dos camarotes e
da plateia. Nós, os do galinheiro, tínhamos de contentar-nos com o reverso
dela, a parte de trás, o outro lado, numa palavra, a ausência. Sim, a ausência.
Ou porque tinha querido poupar algum dinheiro em madeira e em folha de ouro, ou
porque acharam que as pessoas que viriam a sentar-se ali não eram merecedoras
de mais consideração, a coroa do Teatro nacional de São Carlos não é uma coroa
completa, é três quartos de coroa, ou ainda menos. Lá dentro, amparando a real
estrutura, viam-se naquele tempo uns sarrafos mal aplainados, fixados com
pregos torcidos, muito pó, teias de aranha, alguma vingativa e republicana
ponta de cigarro. Como se alguém, nesses distantes e ingénuos dias, tivesse
acendido a luz que haveria de iluminar-me a existência, compreendi que o ponto
de vista do galinheiro é indispensável se realmente quisermos conhecer a coroa.
Sempre gostei de ópera e das razões desse gosto não consigo encontrar a mínima explicação. Nem por influência do meu pai, caso da música clássica, mas tinha pouco, ou nenhum, gosto, paciência pela ópera.
Nos últimos anos da ditadura, o Teatro São Carlos estabeleceu uma parceria com o Coliseu dos Recreios de modo a que as óperas que eram representadas no São Carlos também pudessem ser vistas na velha sala das Portas de Santo Antão.
Era a possibilidade de um vasto
leque da população, sem dinheiro, nem fraque, nem jóias para
frequentar São Carlos, pudessem usufruir desses espectáculos, como
que, provavelmente, dando seguimento à célebre frase de António Silva de
que a ópera é música para
operários.
Vezes sem conta, tentei arranjar
bilhetes para ir ver as récitas das óperas que do São Carlos desciam até ao
Coliseu, mas nunca consegui.
Sabia que os bilhetes eram
distribuídos por aqui e por ali e os poucos que restavam eram postos à venda
mas desapareciam num ápice.
Pela leitura da Alvorada de Abril do Otelo
Saraiva de Carvalho fiquei a saber que a Secção de Actividades Culturais e
Recreativas da Academia Militar era uma das entidades a quem eram distribuídos
os bilhetes para o Coliseu.
A primeira vez – e única – que entrei
no São Carlos foi para assistir à representação de Blimunda, libreto de Azio
Corghi e José Saramago, música de Azio Corghi.
Não esquecerei esse dia, mas quanto
ao resto estou como Ruy Vieira Nery:
«Gostaria, logo à partida, de deixar claro que o melhor da ópera é o libreto de Corghi e Saramago. No conjunto, um espectáculo sério e interessante, agradável à vista e ao ouvido mas de cuja continuidade no reportório operático, uma vez terminado o ciclo das suas produções iniciais, tenho as maiores e mais fundadas dúvidas.»
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