A vida literária de José Saramago está cheia de
episódios rocambolescos. Um deles passa-se ao tempo da atribuição, em 1982, do
Prémio Cidade de Lisboa. Governava a cidade o eng. Krus Abecassis que demorou
longo tempo em cuidar da azia que lhe invadia as entranhas por ter de entregar
a Saramago o respectivo tardio prémio. E Saramago não o poupou quando entendeu
terminar o discurso de entrega do prémio, falando de trabalhadores:
« Levantado do Chão fala de trabalhadores. Foi também a trabalhadores que dirigi as palavras que aí ficam. Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação.»
É este o discurso:
« Quase sete meses passados sobre a data em
que me foi atribuído, recebo o Prémio Cidade de Lisboa. Decida cada um de nós
se foi ou não excessiva a demora, se ela se justificou ou não por mais urgentes
obrigações, se faz ou não sentido manifestar eu esta estranheza. Afinal, quem
sabe se não será de bom aviso deixar que o tempo dissipe os vapores da
imodéstia, os fumos da presunção que, inevitavelmente, atordoam a cabeça do
premiado nas primeiras horas, quando lhe chovem em cima abraços, telegramas,
palavras calorosas, e, também, inevitavelmente, a morrinha dos despeitados.
Parece que é isto a natureza humana. A sete meses de distância as coisas
retomaram a sua verdadeira dimensão, entretanto o autor adiantou outro
trabalho, o livro distinguido é passado já. Hoje precisaria mesmo de algum
esforço para recordar o contentamento que então senti, e se uma parte dessa
felicidade está ressurgindo agora, é porque vieram aqui amigos meus. Não
distingo entre eles e o prémio, se precisamente não é a presença deles o maior
prémio que eu poderia desejar. A todos agradeço, como igualmente agradeço ao
senhor presidente da Câmara ter querido, em pessoa, formalizar a decisão do
júri.
Ditas estas palavras ninguém levaria a mal se me calasse. Porém, tendo
os escritores tão poucas ocasiões de falar nos salões do poder, a mim próprio
não perdoaria se deixasse passar esta em claro. Não serei tão longo quanto
conviria ao assunto. Peço, no entanto, alguma paciência e atenção.
Começarei por perguntar: é possível e desejável ser escritor em
Portugal? Está a sociedade que somos interessada nos escritores que temos?
Diria, para responder de uma só vez, que, aparentemente, a sociedade portuguesa
nada tem contra nós: publica-nos ocasionalmente os livros, graças à prestimosa,
suicidária e também não raro inábil atividade dos editores; dá-nos um lugar na
História da Literatura se nos esforçamos por merecê-lo, condição sempre
necessária, claro está, embora não suficiente; interessa-se por nós, até ao
limite das tiragens ou da proteção oficial; começou agora a preocupar-se com a
nossa doença, a nossa reforma, a nossa morte, na proporção dos direitos de
autor; e, enfim, se morrermos mesmo, se em vida fomos estimados e conhecidos,
se já tínhamos ou prometíamos ocupar algum espaço no panteão das glórias, se
havia um remorso a emendar, uma dívida moral a exigir satisfação, ou, menos
nobremente, uma vaidade póstuma a lisonjear, hoje a moda é pôr o nome do
defunto na esquina duma rua, sem esperar que o tempo faça crescer essa árvore,
amadurecer esse fruto, apurar esse vinho. E parece que também tudo isto se tem
de agradecer.
Aliás, o escritor português, se quiser viver à boa paz com o mundo das
conveniências próprias e dos interesses alheios, há de cultivar o sentimento de
gratidão perpétua. Agradece ao editor que o publica, ao livreiro que o expõe,
ao crítico que o julga, ao leitor que o lê, à rádio quando o diz, à televisão
se o mostra. E os livros, quem lhos reconhece, que de agradecimentos não falo.
A pátria? Que pátria? Esta cidade de Lisboa que dá prémios? O Porto? Coimbra? A
aldeia onde nascemos? Aquele lugar de além, ou vila de mais longe, aonde o
livro, um livro, por milagre chegue? Que peso real, que importância efetiva,
que influência concreta tem o escritor português no seu país? Fora da roda dos
três mil leitores, e vai com sorte se o lêem tantos, é o deserto. Avançar por
ele adentro, plantar oásis, abrir poços, custa muito dinheiro, muito anúncio no
jornal, muita campanha de televisão e rádio, enfim, para usar o calão do tempo,
muito «marketing».
Fala-se interminavelmente de cultura, mas não se vive a cultura.
Comemoram-se os escritores que morrem, mas nada se faz para garantir a
atividade dos vivos. Se um escritor, por desespero, deixou de escrever, ninguém
lhe vai perguntar: «De que precisas para trabalhar?» Dão-se palmas benévolas
aos escritores que envelhecem, mas condenam-se ao silêncio os escritores que
nascem. Afirma-se que a cultura é una e nacional, mas impede-se, ou
dificulta-se, ou menospreza-se a sua divulgação nos meios de comunicação
social. Apregoa-se o pluralismo, fomenta-se a letra única. Teoriza-se o
consenso, pratica-se a excomunhão.
Nada disto é novidade. Novidade será dizê-lo aqui, em hora geralmente
só de parabéns. Sei que estou a infringir as convenções que usam regular o
estilo e a matéria destes discursos, mas não o faço por malevolência ou
provocação. Digo estas coisas ácidas com a esperança de que o lugar e a
circunstância lhes reforcem o significado. E digo também aos escritores que é
nossa obrigação exigir, que não podemos continuar a consentir nesta marginal
vida que é a nossa, a frustração de todos os dias, os livros constantemente
adiados, o incompleto aprofundamento das questões que importam ao trabalho
literário, a dificuldade de romper as barreiras de um quotidiano desgastante, a
carência econômica, a insegurança. Quem responde por não terem os escritores
condições sequer mínimas para exercer o seu ofício com a responsabilidade
inteira de quem não tem que servir outros patrões senão esse, exigentíssimo,
que é a criação literária? Insisto: reclamemos mais, e com mais força. Se não
nos ouve o poder, tentemos que nos ouça o país. Afirmemos o direito à profissão
de escritor como expressão particular de um geral direito ao trabalho. Cuidemos
um pouco menos da carreira pessoal e um pouco mais da reivindicação coletiva.
Quando cada um de nós, se assim o quis, for escritor em todas as horas do seu
dia, talvez não escreva. Melhor por isso, mas acrescentará um novo e legítimo
orgulho ao talento que tiver, e se é verdade que de talento todos achamos ter
que baste, parece-me que de orgulho deveríamos andar mais bem servidos.
Termino. Procurarei que o meu trabalho futuro seja digno deste prémio.
Não esqueço que o receberam Maria Velho da Costa e Augusto Abelaira. Não
poderia esquecer que o recebeu Carlos de Oliveira, nossa irremediável perda.
E agora, sim, concluo. Levantado do Chão fala de trabalhadores. Foi também a trabalhadores que dirigi as palavras que aí ficam. Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação.»
José Saramago em Folhas Políticas, página 109.
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