Não sei, terei um dia
destes de me informar, se a Fundação Saramago tem, ou está em vias de editar,
um livro com as fotografias tiradas por Saramago, principalmente as que fez
para o seu Viagem a Portugal.
Mas no 3º volume de
Cadernos de Lanzarote existe este texto sobre fotografia:
«As mãos levantam
a câmara fotográfica à altura dos olhos e o mundo desaparece. Rápido ou lento,
segundo o grau de urgência ou de provocação da imagem que vai ser captada, o
movimento das mãos respondeu a um estímulo visual. Agora, por trás do visor, o
olho fará reaparecer, não o mundo, mas um fragmento dele, o pouco que pode
caber num rectângulo cujos lados, como lâminas insensíveis, talham e cerceiam o
corpo da realidade. Naquele derradeiro e ínfimo instante que precede o disparo
da objectiva, e como se ao longo das linhas que imperativamente limitam o visor
existisse uma rede de microscópicas condutas, o mundo exterior ainda procurará
penetrar no espaço que lhe foi retirado, para nele deixar um sinal da sua
obliterada dimensão. Fragmento de um todo ou da sua aparência, cada fotografia,
por sua vez, é fragmento de fragmentos, e, por um movimento de aproximação e
expansão em todas as direcções, ao mesmo tempo que pelo movimento contrário de
conversão ao ponto de resolução que finalmente é, torna-se, na imagem
única que apresenta, leitura múltipla do mundo. Mas isso só mais tarde nos será mostrado, quando a imagem apreendida
tiver passado, revelada, ao papel. Então saberemos verdadeiramente o que
havíamos visto quando e onde apenas julgávamos não ter feito mais do que olhar.
Espalhamos as fotografias diante de nós, dispomo-las por temas, assuntos, afinidades, queremos que umas façam perguntas e outras respondam, desejaríamos que contassem uma história, mesmo que breve, mesmo que não viéssemos a conhecer-lhe o fim. Mas parece ser do natural das imagens, ainda quando colhidas de um mesmo objecto e num período mínimo de tempo, resistirem a perder a sua identidade: cada uma delas quererá ser, por supostas e exclusivas virtudes suas, o alfa e o ómega, não só da compreensão de si mesma mas também de todas as decifrações possíveis do espaço invisível que a rodeia, dessa ausência representada pela brancura das margens. O que a fotografia não pode mostrar é precisamente o que emprestaria sentido de realidade ao que estiver mostrando. Por isso talvez seja correcto afirmar que o olho que vê a fotografia, justamente por ser fotografia o que vê, não é o mesmo, ainda que o mesmo seja, que olhou e viu uma parte do mundo para fotografá-la.»
José Saramago em Cadernos de Lanzarote Volume III, página 24.
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