Toda a morte deixa um vazio à espera de ser preenchido.
«A pessoa preparar-se para a morte é a
grande finalidade da vida.»
«Se depois de eu morrer, quiserem
escrever a minha biografia, não há nada mais simples. Tem só duas datas – a da
minha nascença e da minha morte»
« Não só me diverti bastante quando li ‘As Intermitências da Morte’, como me comovi. Não se pode pedir mais a um escritor.»
«Dormitou numa cadeira, quis afundar-se num sono interminável, não
acordar nunca mais. Deitado no chão, à espera de um sinal que não vinha, o cão
olhava-o. Talvez a causa do abatimento do dono fosse a mulher que apareceu no
parque, pensou, afinal não era certo aquele provérbio que dizia que o que os
olhos não vêem, não o sente o coração. Os provérbios estão constantemente a
enganar-nos, concluiu o cão. Eram onze horas quando a campainha da porta tocou.
Algum vizinho com problemas, pensou o violoncelista, e levantou-se para ir
abrir. Boas noites, disse a mulher do camarote, pisando o limiar, Boas noites,
respondeu o músico, esforçando-se por dominar o espasmo que lhe contraía a
glote, Não me pede que entre, Claro que sim, faça o favor. Afastou-se para a
deixar passar, fechou a porta, tudo devagar, lentamente, para que o coração não
lhe explodisse. Com as pernas tremendo acompanhou-a à sala de música, com a mão
que tremia indicou-lhe a cadeira. Pensei que já se tivesse ido embora, disse,
Como vê, resolvi ficar, respondeu a mulher, Mas partirá amanhã, A isso me
comprometi, Suponho que veio para trazer a carta, que não a rasgou, Sim,
tenho-a aqui nesta bolsa, Dê-ma, então, Temos tempo, recordo ter-lhe dito que
as pressas são más conselheiras, Como queira, estou ao seu dispor, Di-lo a
sério, É o meu maior defeito, digo tudo a sério, mesmo quando faço rir,
principalmente quando faço rir, Nesse caso atrevo-me a pedir-lhe um favor,
Qual, Compense-me de ter faltado ontem ao concerto, Não vejo de que maneira,
Tem ali um piano, Nem pense nisso, sou um pianista medíocre, Ou o violoncelo, É
outra cousa, sim, poderei tocar-lhe uma ou duas peças se faz muita questão,
Posso escolher, perguntou a mulher, Sim, mas só o que estiver ao meu alcance,
dentro das minhas possibilidades. A mulher pegou no caderno da suite número
seis de bach e disse, Isto, É muito longa, leva mais de meia hora, e já começa
a ser tarde, Repito-lhe que temos tempo, Há uma passagem no prelúdio em que
tenho dificuldades, Não importa, salta-lhe por cima quando lá chegar, disse a
mulher, ou nem será preciso, vai ver que tocará ainda melhor que rostropovitch.
O violoncelista sorriu, Pode ter a certeza. Abriu o caderno sobre o atril,
respirou fundo, colocou a mão esquerda no braço do violoncelo, a mão direita
conduziu o arco até quase roçar as cordas, e começou. De mais sabia ele que não
era rostropovitch, que não passava de um solista de orquestra quando o acaso de
um programa assim o exigia, mas aqui, perante esta mulher, com o seu cão
deitado aos pés, a esta hora da noite, rodeado de livros, de cadernos de
música, de partituras, era o próprio johann sebastian bach compondo em cöthen o
que mais tarde seria chamado opus mil e doze, obras elas quase tantas como
foram as da criação. A passagem difícil foi transposta sem que ele se tivesse
apercebido da proeza que havia cometido, mãos felizes faziam murmurar, falar,
cantar, rugir o violoncelo, eis o que faltou a rostropovitch, esta sala de
música, esta hora, esta mulher. Quando ele terminou, as mãos dela já não
estavam frias, as suas ardiam, por isso foi que as mãos se deram às mãos e não
se estranharam. Passava muito da uma hora da madrugada quando o violoncelista
perguntou, Quer que chame um táxi para a levar ao hotel, e a mulher respondeu,
Não, ficarei contigo, e ofereceu- lhe a boca. Entraram no quarto, despiram-se e
o que estava escrito que aconteceria, aconteceu enfim, e outra vez, e outra
ainda. Ele adormeceu, ela não. Então ela, a morte, levantou-se, abriu a bolsa
que tinha deixado na sala e retirou a carta de cor violeta. Olhou em redor como
se estivesse à procura de um lugar onde a pudesse deixar, sobre o piano, metida
entre as cordas do violoncelo, ou então no próprio quarto, debaixo da almofada
em que a cabeça do homem descansava. Não o fez. Saiu para a cozinha, acendeu um
fósforo, um fósforo humilde, ela que poderia desfazer o papel com o olhar,
reduzi-lo a uma impalpável poeira, ela que poderia pegar-lhe fogo só com o
contacto dos dedos, e era um simples fósforo, o fósforo comum, o fósforo de
todos os dias, que fazia arder a carta da morte, essa que só a morte podia
destruir. Não ficaram cinzas. A morte voltou para a cama, abraçou-se ao homem
e, sem compreender o que lhe estava a suceder, ela que nunca dormia, sentiu que
o sono lhe fazia descair suavemente as pálpebras. No dia seguinte ninguém
morreu.»
José Saramago em As Intermitências da Morte, página 212
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