sábado, 12 de novembro de 2022

CARTA DE JOSÉ A JOSÉ

Eu te digo, José: por esta carta

Não garanto mentira nem verdade:

A ciência de mim sempre se aparta

Desta náusea de ser e de vontade.

São inúteis cobiças, vãos desgosto,

São braços levantados, já caídos,

São as rugas que vincam os cem rostos

Da comédia e do jogo repetidos.

Desse lado da mesa (ou deste espelho)

Vais seguindo as palavras invertidas:

Verás melhor assim se (quanto) valho

Ao invés dos sinais e das medidas.

(correm águas geladas no meu rio,

E mortos cantos de aves, derivando

Por silêncio frustrado e calafrio,

Vão amanhã doutro dia recordando.)

Cai a chuva do céu, e não te molha,

Está a noite entre nós, e não te cega.

Não sorrias. José: à tua escolha

O que me sobra de alma e se nega.

Desse lado da mesa, onde me acusas,

Te levantas. A marca do teu pé,

Na soleira da porta que recusas,

Fecha de vez a carta abandonada.

Tua sombra pisada, teu amigo – José

José Saramago em Os Poemas Possíveis

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