Eu te digo, José: por esta carta
Não garanto mentira nem verdade:
A ciência de mim sempre se aparta
Desta náusea de ser e de vontade.
São inúteis cobiças, vãos desgosto,
São braços levantados, já caídos,
São as rugas que vincam os cem rostos
Da comédia e do jogo repetidos.
Desse lado da mesa (ou deste espelho)
Vais seguindo as palavras invertidas:
Verás melhor assim se (quanto) valho
Ao invés dos sinais e das medidas.
(correm águas geladas no meu rio,
E mortos cantos de aves, derivando
Por silêncio frustrado e calafrio,
Vão amanhã doutro dia recordando.)
Cai a chuva do céu, e não te molha,
Está a noite entre nós, e não te cega.
Não sorrias. José: à tua escolha
O que me sobra de alma e se nega.
Desse lado da mesa, onde me acusas,
Te levantas. A marca do teu pé,
Na soleira da porta que recusas,
Fecha de vez a carta abandonada.
Tua sombra pisada, teu amigo – José
José Saramago em Os Poemas Possíveis
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