segunda-feira, 14 de novembro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Maria Alzira Seixo escreveu que o Manual de Pintura e Caligrafia «é o cadinho de todas as tendências pré-ficcionais de José Saramago, e daí a sua grande importância e originalidade na consideração evolutiva da sua obra».

Baptista-Bastos lamentará até que o autor não tenha aprofundado essa via: «Acho que o Manuel de Pintura e Caligrafia é um grande livro, que devia ser um caminho que ele devia ter encetado. É a minha opinião. Porque é uma coisa gira sob o ponto de vista das interrogações que um artista tem para fazer as coisas. É um bocado parecido com Os Sonâmbulos, do Herman Broch, é um bocado umas perplexidades do autor.»

Numa conferência, realizada em Turim no ano de 1997, José Saramago falou sobre a sua obra. O que aí foi dito, encontra-se num livro intitulado a Estátua e a Pedra:

«Com alguma surpresa de quem me escuta, desde há algum tempo que cada vez menos me interessa falar de literatura.»

Dessa conversa, posta em livro, retiro hoje o que Saramago escreveu sobre o seu Manual de Pintura e Caligrafia:

«Em 1977, portanto dois anos depois de ter deixado ou de ter sido compelido a deixar as funções que tinha no Diário de Notícias, eu publiquei um romance que se chama Manual de Pintura e Caligrafia. É o meu romance mais italiano, quer dizer, eu diria mesmo, que é o único romance italiano porque é de facto um romance onde a Itália tem uma presença, digamos, mesmo em termos quantitativos, número de páginas, bastante evidente. O Manual de Pintura e Caligrafia não promete nada ser um romance histórico. E eu começo já por acentuar isto para que se veja como é redutora, e penso que cada vez mais, esta definição de José Saramago romancista histórico. O Manual de Pintura e Caligrafia não é um romance histórico, é um romance de actualidade, é um romance que foi escrito no ano de 76, publicado em 77 e que se reporta exactamente às semanas anteriores à Revolução de Abril de 74. É a história de um pintor, não há que estranhar, eu, enfim sempre me interessei muito pela pintura, é a história dum pintor, mas não é a história de um pintor genial, é a história dum pintor medíocre, um pintor que ainda por cima tem a consciência da sua mediocridade, o que é verdadeiramente extraordinário, e é um pintor que não está contente com aquilo que faz e começa por tentar pintar melhor, ser melhor pintor, mas evidentemente essas coisas não resultam da simples vontade e ele reconhece que não, enfim, que não pode ir além daquilo que é o seu campo possível de trabalho. Então decide começar a escrever sobre a pintura que faz e inevitavelmente acaba por escrever sobre a escrita que está fazendo sobre a pintura que faz. Por isso o livro se chama Manual de Pintura e Caligrafia, como alguém que não está a aprender por um manual porque o livro começa por não existir, o livro é escrito. A história é contada na primeira pessoa, enfim como se calcula, a Itália aparece porque ele faz umas quantas viagens e portanto descreve o que viu, é, no que se refere à Itália, uma espécie de percurso artístico, mas, no que se refere à sua própria vivência pessoal, é um mergulho dentro daquilo que ele julga ser, como hipótese de poder vir a ser outra coisa. É o primeiro romance, sendo o primeiro romance desta minha última vida, e é também o romance onde imediatamente a figura da mulher aparece como o elemento de transformação. Este pintor conhece uma mulher e é esse conhecimento que o faz reconsiderar que os caminhos pelos quais ele estava tentando conhecer-se a si mesmo não eram com certeza aqueles que poderiam levá-lo a ter uma ideia clara de si mesmo, porque era indispensável que nesse percurso para ele chegar a si mesmo tivesse de passar por outro, neste caso, pelo outro que é essa mulher, para que o caminho pudesse ter um sentido. O livro acaba precisamente na noite da Revolução do 25 de Abril de 1974. O futuro desses dois, o pintor e a mulher a quem ele ama e que o ama a ele não o sei, não sei se ainda estão felizes ou se entretanto qualquer coisa lhes aconteceu que interrompeu aquela união. De romance histórico, portanto, nada. Não há aqui nada de romance histórico.»

Na conversa tida em Turim, Saramago diz que o livro acaba na noite da Revolução do 25 de Abril.

Assim:

«O regime caiu. Golpe militar, como se esperava. Não sei descrever o dia de hoje: as tropas, os carros de combate, a felicidade, os abraços, as palavras de alegria, o nervosismo, o puro júbilo. Estou neste momento sozinho: M. foi encontrar-se com alguém do Partido, não sei onde. Vai acabar a clandestinidade. O meu auto-retrato já esta muito adiantado. Dormíamos em minha casa, M. e eu, quando o Chico, noctívago, telefonou, aos gritos, que ouvíssemos a rádio. Levantámo-nos de um salto (estás a chorar, meu amor?): «Aqui Posto de Comando das Forças Armadas. As Forças Armadas portuguesas apelam para todos os habitantes da cidade de Lisboa...» Abraçámo-nos (meu amor, estás a chorar), e embrulhados no mesmo lençol, abrimos a janela: a cidade, oh cidade, ainda noite por cima das nossas cabeças, mas já uma claridade difusa ao longe. Eu disse: «Amanhã vamos buscar o António.» M. apertou-se muito contra mim. «E um dia destes dar-te-ei uns papeis que aí tenho. Para leres.» «Segredos?», perguntou ela, sorrindo. «Não, papeis. Coisas escritas.»

José Saramago em Manual de Pintura e Caligrafia, página 351.                                                              

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