quinta-feira, 3 de novembro de 2022

A MESA É O PRIMEIRO OBJECTO...

A mesa é o primeiro objecto do sonho.

É branca, de madeira branca, sem pintura.

Tem papéis brancos que flutuam e se esquivam aos

     Gestos.   

O lugar seria um escritório se não fosse uma espé-

     cie de abside com degraus.

A parede curva, sem reboco, mostra as pedras roídas.

Quando o sonhador acordar, tentará saber onde

   esteve e há-de lembrar-se de uma ruína assim,

   em Paris, no museu de Cluny.

Mas não tem a certeza.

Os papéis brancos não obedecem, e isto impacienta o sonhador.

De repente há uma presença na abside, não bem uma presença, uma ameaça que se difunde e paira.

Começa o terror.

O homem que sonha quer resistir, mas o medo

     é mais forte, e não há ali ninguém a quem tivesse

    de mostrar coragem.
Foge por um longo corredor e pára junto de uma

     porta que dá certamente para um jardim.


Olha para trás, vai aparecer alguém.
Ao fundo do corredor passa de relance uma rapa-


      riga cor de fumo.
O medo é insuportável.


A rapariga vem pelo corredor, rodopiando em zigue-

       zague, fazendo ricochete de parede a parede.


«Quem és?», pergunta o homem que sonha.


«Papoila», responde a rapariga, e ri sem ruído.


O medo lança o homem no jardim.


Cai no chão, e a rapariga, já não cor de fumo,

      mas suja, cai também.
Ao cair duplica-se, e as duas lutam arrancando-se


      bocados de roupas e de carne que logo se recons

     tituem.

Há sobretudo arrancamentos tubulares que se pro-

     longam como ventosas, puxadas pelos dentes.

O homem não aguenta mais, tem de libertar-se já.


Mas outra rapariga surge, igual às duas, e esta é

     muito maior.


Estão todos estendidos no chão, presos uns aos

     outros, e contudo não se tocam.


A rapariga grande tem um ovo dentro do bolso

     do avental.
Se aquele ovo for tirado e lançado pelo jardim fora

     e partido, será o fim do pesadelo.
Porque nesta altura o homem sabe que está

    a sonhar.


A rapariga grande senta-se no chão, dobra os joe

    lhos, a saia escorrega sobre as coxas, o sexo

    fica à vista.


O ovo, é preciso tirar-lhe o ovo.


A rapariga começa a remexer-se, rindo.


Chegou o momento.


O homem mete-lhe a mão no bolso, agarra o ovo.


E acorda.

José Saramago em Provavelmente Alegria

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