A mesa é o primeiro objecto do sonho.
É branca, de madeira branca, sem pintura.
Tem papéis brancos que flutuam e se esquivam aos
Gestos.
O lugar seria um escritório se não fosse uma espé-
cie de abside com degraus.
A parede curva, sem reboco, mostra as pedras roídas.
Quando o sonhador acordar, tentará saber onde
esteve e há-de lembrar-se de
uma ruína assim,
em Paris, no museu de Cluny.
Mas não tem a certeza.
Os papéis brancos não obedecem, e isto impacienta o sonhador.
De repente há uma presença na abside, não bem uma presença, uma ameaça
que se difunde e paira.
Começa o terror.
O homem que sonha quer resistir,
mas o medo
é mais forte, e não há ali ninguém a quem tivesse
de mostrar coragem.
Foge por um longo corredor e pára junto de uma
porta que dá certamente para um jardim.
Olha para trás, vai aparecer alguém.
Ao fundo do corredor passa de relance uma rapa-
riga cor de fumo.
O medo é insuportável.
A rapariga vem pelo corredor, rodopiando em zigue-
zague, fazendo ricochete de parede a parede.
«Quem és?», pergunta o homem que sonha.
«Papoila», responde a rapariga, e ri sem ruído.
O medo lança o homem no jardim.
Cai no chão, e a rapariga, já não cor de fumo,
mas suja, cai também.
Ao cair duplica-se, e as duas lutam arrancando-se
bocados de roupas e de carne que logo se
recons
tituem.
Há sobretudo arrancamentos
tubulares que se pro-
longam como ventosas, puxadas pelos dentes.
O homem não aguenta mais, tem de libertar-se já.
Mas outra rapariga surge, igual às duas, e esta é
muito maior.
Estão todos estendidos no chão, presos uns aos
outros, e contudo não se tocam.
A rapariga grande tem um ovo dentro do bolso
do avental.
Se aquele ovo for tirado e lançado pelo jardim fora
e partido, será o fim do pesadelo.
Porque nesta altura o homem sabe que está
a sonhar.
A rapariga grande senta-se no chão, dobra os joe
lhos, a saia escorrega sobre as coxas, o sexo
fica à vista.
O ovo, é preciso tirar-lhe o ovo.
A rapariga começa a remexer-se, rindo.
Chegou o momento.
O homem mete-lhe a mão no bolso, agarra o ovo.
E acorda.
José Saramago em Provavelmente Alegria
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