quarta-feira, 30 de novembro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


 Terminamos, por hoje, alguns dos passos para se chegar ao único Nobel da Literatura em português.

A descrição que se segue encontra-se em Uma Longa Viagem Com José Saramago de João Céu e Silva

 “Eu estava na Feira do Livro de Frankfurt, onde tinha participado numa mesa redonda com outros escritores, exactamente na altura em que o Prémio Nobel seria anunciado – normalmente é revelado na primeira quinta-feira do mês e eu estava na terça e na quarta em Frankfurt. A Pilar tinha ouvido uns “zunszuns” mas não queria, evidentemente, confirmar nada. Nem poderia… Na manhã do dia em que foi anunciado, quando ela me telefona – ou eu telefono do hotel, já não me lembro qual de nós o fez mas creio que foi ela disse-me: “Porque é que não ficas aí? Porque com essa coisa do Nobel nunca se sabe… E eu: “Pilar, eu fico aqui, não me dão o Nobel e perco o avião! Vou-me embora”. Fui para o Aeroporto de Frankfurt. O avião partia às 12,05 e o anúncio do prémio era feito ao meio-dia, altura em que o secretário da Academia Sueca vinha anunciar o nome do galardoado aos jornalistas que estavam no exterior. Ora, eu já estava na sala de embarque em Frankfurt e na fila dos passageiros para entrar quando, de repente, olho para o relógio e penso: “A esta hora já se sabe quem é que ganhou. É um pouco disparatado ir-me daqui sem saber…!” Então saio da fila, vou a um telefone, ligo para o sector de Portugal na Feira do Livro e mando chamar o Zeferino Coelho. Ele não estava ali e a pessoa que me atendeu foi à sua procura enquanto fiquei à espera. Nessa altura ouço uma voz no altifalante que me chama e ao mesmo tempo aproxima-se uma hospedeira da Lufthansa – apesar do avião ser da Ibéria – que vem com um telefone na mão e diz: 


“Está aqui uma jornalista que quer falar consigo”. O mais curioso é que a correspondente da televisão (Teresa Cruz) deve ter dito a razão porque ela não pôde conter-se e disse-me: “È que o senhor ganhou o Prémio Nobel”

Sei que estava evidentemente feliz, mas era uma felicidade que não se manifestava feliz porque era uma grande coisa da qual eu não tinha noção do tamanho.”

 Luciana Stegano Picchio, especialista italiana em literatura portuguesa:


“Este é o prémio mais justo dos últimos 15 anos. Durante todos os anos em que foi atribuído o Nobel, nunca tinha sido reconhecido este bloco linguístico de mais de 200 milhões de pessoas. Estávamos à espera há muito tempo desta notícia, com aquela angústia de quem não vê chegar as malas ao aeroporto. Desta vez chegou. É justo. Saramago merece o Nobel.”

 «A notícia engravidou-nos de satisfação»

 António Reis, poeta

 «Gostava de conhecê-lo pessoalmente para lhe poder dizer que, de alguma forma, os  seus livros mudaram muito da minha vida.», como escreveu um leitor anónimo, naquelas muitas milhares e milhares de cartas que Saramago recebeu e que ainda aguardam publicação em livro, tal como um dia o autor deixou expresso.

«Tenho milhares de cartas e costumo dizer que a obra completa de um escritor só estará realmente completa publicando-se uma selecção das cartas dos leitores porque – fala-se tanto da teoria da recepção – é naquelas cartas que se vê realmente o que é a recepção. Em casa devemos ter umas duas mil cartas de leitores que é preciso classificar e ordenar.»

 E nas imagens, que também ninguém registou, sabemos que nas noites quentes de Verão, depois da ceia, o avô dizia-lhe:

 «José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira.

E enquanto o sono não chegava, a noite povoava-se com as histórias e os casos que o meu avô ia contando: lendas, aparições, assombros, episódios singulares, mortes antigas, zaragatas de pau e pedra, palavras de antepassados, um incansável rumor de memórias que me mantinha desperto, ao mesmo tempo que suavemente me acalentava.

Nem será preciso dizer que eu imaginava que o meu avô Jerónimo era senhor de toda a ciência do mundo.»

 Ali, naquelas noites, outras noites, terão nascido todas as personagens que encheram o mundo dos livros de José Saramago, fizeram dele a pessoa que sempre foi, que uns amam, outros odeiam, mas a que não se pode ficar indiferente.

 «Em certo sentido poder-se-á dizer que, letra a letra, palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo, sucessivamente, a implantar no homem que fui as personagens que criei.»

 E, servindo-se do seu livro Ensaio Sobre a Cegueira, em final de discurso, dirá «que a dignidade do ser humano é todos os dias insultada pelos poderosos do nosso mundo».

 Carta de Sophia Mello Breyber Andresen, datada de Março de 1978, para Jorge de  Sena:

 «Surgiu um facto que quero que fique claro: Por alturas de Dezembro recebi uma carta da Academia Sueca a convidar-me para eu propor um candidato ao Nobel da Literatura. No ano passado propus o teu nome. Depois disso, aqui há tempos surgiu uma comissão propondo o Torga e pediram-me que me associasse à sua proposta. Associei-me pois não me podia negar. Primeiro porque admiro muito o Torga, segundo porque gostaria que houvesse um Nobel português, uma vez que seja um escritor que tenha um nível de qualidade que como pátria me honre. Isto é : eu queria que o voto em ti funcionasse a teu favor, mas não contra o Torga. Para que não fosse diminuída a possibilidade de o Nobel ser atribuído a um português. Em consequência escrevi de novo à Academia Sueca explicando que mantinha o voto em ti mas que também apoiava uma candidatura do Torga dado que ambas eram candidaturas com grande qualidade e dignidade.»

Só te digo isto a ti porque a carta da Academia Sueca me pede silêncio sobre o meu voto por isso te peço que não fales disto a ninguém.

Em Correspondência


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