sábado, 26 de novembro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Se há palavras que detesto, o «politicamente correcto» é uma delas, porque raro compreendo os que as aplicam, ou o que querem dizer quando as aplicam.

Desde que saiu o 1º volume de Os Cadernos de Lanzarote se percebeu, facilmente, que os que  desprezaram a ideia, estavam mais interessados em apoucar José Saramago do que outra coisa qualquer. Não tardaram a chamar-lhe narciso, não sabendo – nem querem saber! – que poderão existir narcisos de excelência.

Numa entrevista ao JL, sobre  o começo da publicação dos Cadernos, Saramago disse:

« Desde que o Eduardo Prado Coelho declarou que lhe deu «um grande gozo» escrever Tudo O Que Não Escrevi, parece que se esperam afirmações de um «gozo» pelo menos igual por parte daqueles que também praticam o ofício. Por meu lado, o que me preocupa é o «gozo», o «prazer», que possam vir a ter os leitores  diante do que, para mim,  foi trabalho».

São diversos os temas e os problemas que Saramago a aflora nos seus Cadernos. Muitos dos apontamentos estão datados no tempo, outros não são fáceis de clarificar, por não sabermos de quem Saramago fala, ou quer falar, e o porquê, outros, ou aqueles em que o pé não joga com a chinela. Mas a maior parte são clarinhos como água: as fricções invejosas de Lobo Antunes que sugeriu a Saramago que devia deixar um parêntese aberto à noite para arejar a prosa ou quando afirmou que Saramago era um pobre inútil, pois existem muitos escritores que são propagandistas de si mesmos.

Em resumo: críticos, outras gentes, entenderam que os Cadernos estão repletos de fragilidades, vaidades. 

Entendo estes Cadernos, nunca como uma obra marginal, antes uma ajuda, boa ajuda, na finalidade de compreender, para além de outras suas obras, José Saramago, o escritor e o cidadão.

 

29 de Abril de 1993

 

   A propósito da publicação em França do seu Requiem, Antonio Tabucchi dá uma entrevista a Le Monde. Em certa altura, o entrevistador, René de Ceccaty, informa os seus leitores de que Tabucchi é o principal introdutor da literatura portuguesa em Itália, asserção que não pretendo discutir, mas que, desde logo, seria bastante mais exacta se, onde se diz é, se tivesse dito foi. O que sobretudo me interessa aqui é o que vem a seguir, posto no francês próprio para que não se percam nem o sabor nem o rigor: “Toutefois, si l’on évoque José Saramago, Tabucchi prend un air absent et détourne le regard. Manifestement, c’est vers une autre littérature que ses affinités le dirigent.” Porque René de Ceccatty passou de imediato a outro tema, porque, por distracção ou delicadeza, não perguntou a Tabucchi a razão profunda daquele “ar ausente” e daquele “desvio do olhar”, devo ter perdido a grande ocasião de conhecer, enfim, os motivos da hostilidade mal disfarçada e da evidente frieza que Tabucchi manifesta sempre que tem de falar de mim ou comigo. Acontece na minha presença, posso imaginar, a partir de agora, como será a ausência. Disse que perdi a ocasião, mas talvez não seja assim. Toda a entrevista se desenrola no campo da relação vivencial e intelectual de Tabucchi com Pessoa, e foi justamente isto, este discurso fechado, este ritornelo obsessivo, que, num repente, me pôs a funcionar a intuição: Antonio Tabucchi não me perdoará nunca ter escrito O Ano da Morte de Ricardo Reis. Herdeiro, ele, como faz questão de se mostrar, de Pessoa, tanto no físico quanto no mental, viu aparecer nas mãos de outrem aquilo que teria sido a coroa da sua vida, se se tivesse lembrado a horas e tivesse a vontade necessária: narrar, em verdadeiro romance, o regresso e a morte de Ricardo Reis, ser Reis e ser Pessoa, por um tempo, humildemente – e depois retirar-se, porque o mundo é vasto de mais para andarmos cá a contar sempre as mesmas histórias. Admito que a verdade possa não coincidir, ponto por ponto, com estas presunções minhas, mas reconheça-se, ao menos, que se trata de uma boa hipótese de trabalho… Como se já não fosse suficiente carrego ter de levar às costas a inveja dos portugueses, sai-me agora ao caminho este italiano que eu tinha por amigo, com um arzinho falsamente ausente, desviando os olhos, a fingir que não me vê.

 

José Saramago, Cadernos de Lanzarote, página 22

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