Se há palavras que detesto, o «politicamente correcto» é uma delas, porque raro compreendo os que as aplicam, ou o que querem dizer quando as aplicam.
Desde que saiu o 1º volume de Os Cadernos de Lanzarote se percebeu, facilmente, que os que desprezaram a ideia, estavam mais interessados
em apoucar José Saramago do que outra coisa qualquer. Não tardaram a chamar-lhe
narciso, não sabendo – nem querem saber! – que poderão existir narcisos de
excelência.
Numa entrevista ao JL, sobre o começo da publicação dos Cadernos, Saramago
disse:
« Desde que o Eduardo Prado Coelho declarou que lhe
deu «um grande gozo» escrever Tudo O Que Não Escrevi, parece que se esperam
afirmações de um «gozo» pelo menos igual por parte daqueles que também praticam
o ofício. Por meu lado, o que me preocupa é o «gozo», o «prazer», que possam
vir a ter os leitores diante do que,
para mim, foi trabalho».
São diversos os temas e os problemas que Saramago a aflora nos seus Cadernos. Muitos dos apontamentos estão datados no tempo, outros
não são fáceis de clarificar, por não sabermos de quem Saramago fala, ou quer
falar, e o porquê, outros, ou aqueles em que o pé não joga com a chinela. Mas a maior parte são clarinhos
como água: as fricções invejosas de Lobo Antunes que sugeriu a Saramago que devia
deixar um parêntese aberto à noite para arejar a prosa ou quando afirmou que
Saramago era um pobre inútil, pois existem muitos escritores que são
propagandistas de si mesmos.
Em resumo: críticos, outras gentes, entenderam que os Cadernos estão repletos de fragilidades, vaidades.
Entendo estes Cadernos,
nunca como uma obra marginal, antes uma ajuda, boa ajuda, na finalidade de compreender,
para além de outras suas obras, José Saramago, o escritor e o cidadão.
29 de Abril de 1993
A propósito da publicação em França do seu Requiem,
Antonio Tabucchi dá uma entrevista a Le Monde. Em certa altura, o entrevistador,
René de Ceccaty, informa os seus leitores de que Tabucchi é o principal
introdutor da literatura portuguesa em Itália, asserção que não pretendo
discutir, mas que, desde logo, seria bastante mais exacta se, onde se diz é, se
tivesse dito foi. O que sobretudo me interessa aqui é o que vem a seguir, posto
no francês próprio para que não se percam nem o sabor nem o rigor: “Toutefois,
si l’on évoque José Saramago, Tabucchi prend un air absent et détourne le
regard. Manifestement, c’est vers une autre littérature que ses affinités le
dirigent.” Porque René de Ceccatty passou de imediato a outro tema, porque, por
distracção ou delicadeza, não perguntou a Tabucchi a razão profunda daquele “ar
ausente” e daquele “desvio do olhar”, devo ter perdido a grande ocasião de
conhecer, enfim, os motivos da hostilidade mal disfarçada e da evidente frieza
que Tabucchi manifesta sempre que tem de falar de mim ou comigo. Acontece na
minha presença, posso imaginar, a partir de agora, como será a ausência. Disse
que perdi a ocasião, mas talvez não seja assim. Toda a entrevista se desenrola
no campo da relação vivencial e intelectual de Tabucchi com Pessoa, e foi
justamente isto, este discurso fechado, este ritornelo obsessivo, que, num
repente, me pôs a funcionar a intuição: Antonio Tabucchi não me perdoará nunca
ter escrito O Ano da Morte de Ricardo Reis. Herdeiro, ele, como faz questão de
se mostrar, de Pessoa, tanto no físico quanto no mental, viu aparecer nas mãos
de outrem aquilo que teria sido a coroa da sua vida, se se tivesse lembrado a
horas e tivesse a vontade necessária: narrar, em verdadeiro romance, o regresso
e a morte de Ricardo Reis, ser Reis e ser Pessoa, por um tempo, humildemente –
e depois retirar-se, porque o mundo é vasto de mais para andarmos cá a contar
sempre as mesmas histórias. Admito que a verdade possa não coincidir, ponto por
ponto, com estas presunções minhas, mas reconheça-se, ao menos, que se trata de
uma boa hipótese de trabalho… Como se já não fosse suficiente carrego ter de
levar às costas a inveja dos portugueses, sai-me agora ao caminho este italiano
que eu tinha por amigo, com um arzinho falsamente ausente, desviando os olhos,
a fingir que não me vê.
José Saramago, Cadernos de Lanzarote, página 22
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