sexta-feira, 11 de novembro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Ainda estamos nas lembranças cinematográficas de José Saramago, também a lembrança das muitas histórias das muitas partes de casa em que viveu: «lembro-me de dormir no chão, no quarto dos meus pais…».


«Lembro-me de dormir no chão, no quarto dos meus pais (único, aliás, como já disse), e dali os chamar a tremer de medo porque debaixo da cama, ou num capote dependurado do cabide, ou na forma distorcida de uma cómoda ou de uma cadeira, seres indescritíveis se moviam e ameaçavam saltar sobre mim para devorar-me. A responsabilidade de tais pavores, creio, teve-a aquele famoso Cinema «Piolho», na Mouraria, onde, com o meu amigo Félix, me alimentei espiritualmente das mil caras de Lon Chaney, de gente malvada e cínicos da pior espécie, de visões de fantasmas, de magias sobrenaturais, de torres malditas, de subterrâneos lôbregos, enfim, de toda a parafernália, então ainda no jardim da infância, do susto individual e colectivo a baixo preço. Numa dessas fitas, em certa altura, romanticamente sentado numa varanda e, pela expressão da cara, a cismar na mulher amada, aparecia o galã da história (era assim que se dizia na época, mas nós, os do «Piolho», chamávamos-lhe, sem cerimónias, o rapaz), com o antebraço direito descansando sobre um murete, por trás do qual, após um momento de expectativa, começou a subir, tenebrosamente encarapuçado e com medonha lentidão, um leproso que assentou uma das mãos carcomidas pela doença sobre a mão alvíssima do actor, o qual, acto contínuo, ali mesmo e à nossa vista, contraiu, na pessoa da personagem, o mal de Hansen. Nunca, em toda a história das enfermidades humanas, se haverá dado um caso de contágio tão rápido. O resultado de um tal horror foi que, nessa noite, dormindo eu na mesma cama que o Félix (não sei por que razão, uma vez que não era costume), acordei a altas horas e vi no meio do quarto, também casa de jantar da outra família, o leproso da fita, exactamente como nos tinha aparecido, todo de negro, com um capuz em bico e um bordão que lhe chegava à altura da cabeça. Sacudi o Félix, que dormia, e sussurrei-lhe ao ouvido: «Olha, olha para ali.» O Félix olhou e, explique-o agora quem puder, viu exactamente aquilo que eu estava a ver, isto é, o leproso. Apavorados, enfiámos a cabeça debaixo da roupa e assim ficámos por muito tempo, asfixiando de medo e falta de ar, até que nos atrevemos a espreitar por cima da dobra do lençol para verificar, com infinito alívio, que a pobre criatura se havia ido embora. No final da fita, o rapaz curava-se pela virtude da fé que o tinha levado a banhar-se na gruta de Lourdes, de onde, tendo entrado manchado, saiu limpo para os braços da ingénua, ou rapariga, como com igual desrespeito lhe chamávamos.

José Saramago em As Pequenas Memórias, página 57

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