É hoje que começa no Catar o Campeonato do Mundo da Vergonha.
A um país que o não é, antes uma choldra,
o campeonato sujo custou 220 mil milhões de dólares e, segundo números, apenas
até 2020, do The Guardian, já tinham
morrido no Catar 6.500 trabalhadores.
Na longa conversa que manteve com João Céu e Silva,
lamentava o espectáculo de os portugueses, por ocasião do Euro 2004, seguindo
uma ideia provinciano-disparatada de Scolari, terem colocado bandeiras
nacionais nas janelas e engalanado as ruas – e o patriotismo do portuguesinho
não é assim tanto.
«Era profundamente ridículo essa quantidade de bandeiras. É aquilo a que eu chamo fogos de palha, que ardem com muita violência, queimam-se, esgotam-se e reduzem-se a cinzas em pouco.»
Já no seu livro Intermitências
da Morte, ridicularizara o facto.
Lembremos as palavras de Saramago:
«Um dia, uma senhora em estado de viúva recente, não encontrando outra maneira de manifestar a nova felicidade que lhe inundava o ser, e se bem que com a ligeira dor de saber que, não morrendo ela, nunca mais voltaria a ver o pranteado defunto, lembrou-se de pendurar para a rua, na sacada florida da sua casa de jantar, a bandeira nacional. Foi o que se costuma chamar meu dito, meu feito. Em menos de quarenta e oito horas o embandeiramento alastrou a todo o país, as cores e os símbolos da bandeira tomaram conta da paisagem, com maior visibilidade nas cidades pela evidente razão de 3estarem mais beneficiadas de varandas e janelas que o campo. Era impossível resistir a um tal fervor patriótico, sobretudo porque, vindas não se sabia donde, haviam começado a difundir-se certas declarações inquietantes, para não dizer francamente ameaçadoras, como fosse, por exemplo, Quem não puser a imortal bandeira da pátria à janela da sal casa, não merece estar vivo, Aqueles que não andam com a bandeira nacional bem à vista é porque se venderam à morte, Junte-se a nós, seja patriota, compre uma bandeira, Compre outra, Compre mais outra, Abaixo os inimigos da vida, o que lhes vale a eles é já não haver morte. As ruas eram um autêntico arraial de insígnias desfraldadas, batidas pelo vento, se este soprava, ou, quando não, um ventilador eléctrico colocado a jeito fazia-lhe as vezes, e se a potência do aparelho não era bastante para que o estandarte virilmente drapejasse, obrigando-o a dar aqueles estalos de chicote que tanto exaltam os espíritos marciais, ao menos fazia com que ondulassem honrosamente as cores da pátria. Alguma raras pessoas, à boca pequena, murmuravam que aquilo era um exagero, um despropósito, que mais tarde ou mis cedo não haveria outro remédio que retirar aquele bandeiral todo, e quanto mais cedo melhor o fizermos, melhor, porque da mesma maneira que demasiado açúcar no pudim dá cabo do paladar e prejudica o processo digestivo, também o normal e mais do que respeito pelos emblemas patrióticos acabará por converter-se em chacota se permitirmos que descambe em autênticos atentados contra o pudor, como os exibicionistas de gabardina de execrada memória. Além disso, diziam, as bandeiras estão aí para celebrar o facto de que a morte deixou de matar, então de duas uma, os as retiramos antes de que com a fartura comecemos a embirrar com os símbolos da pátria, ou vamos levar o resto da vida, isto é, a eternidade, sim, dizemos bem, a eternidade, a mudá-los de cada vez que os apodreça a chuva, que o vento os esfarrape ou que o sol lhes coma o colorido. Eram pouquíssimas as pessoas que tinham a coragem de pôr assim, publicamente, o dedo na ferida, e um pobre homem houve que teve de pagar a antipatriótico desabafo com uma tareia que, se não lhe acabou ali mesmo com a triste vida, foi só porque a morte havia deixado de operar neste país desde o princípio do ano.
José Saramago em
As Intermitências da Morte, página 26.
Sem comentários:
Enviar um comentário