Tal como qualquer
criança que se preze, quando eu era menino os dias de ida à Feira Popular eram
de grande excitação.
Embora a minha Mãe me
tenha garantido que os meus Pais me chegaram a levar, de tenra idade, à
primeira grande Feira que existiu em Palhavã, nos terrenos onde depois se
instalou a Fundação Gulbenkian, não tenho qualquer recordação desses tempos.
Para mim, Feira
Popular foi e sempre será a de Entrecampos, com o fascínio adicional de se
realizar nos terrenos onde brinquei até aos 5 anos de idade e de ainda por lá
ter ficado de pé, durante muitos anos, a própria casa onde nasci.
Essa Feira abriu ao
público em 1961, tinha eu 7 anos, pelo que não será de estranhar que as minhas
primeiras memórias dela sejam as de ver desaparecer de vista os meus três
irmãos, muito mais velhos do que eu, e ficar sentadinho na mesa do restaurante
ao lado dos meus Pais, ansiosamente à espera que o meu Pai acabasse de fumar o
charuto ou a cigarrilha com que se deleitava no final dessas refeições.
Depois, ano após ano, fui ganhando alguma autonomia, desde que não desaparecesse para muito longe e não faltasse ao encontro no local determinado.
Nesses primeiros
tempos, passar pela grande porta principal da Feira Popular, aquela que se
abria para a Avª da Republica, era como entrar no Paraíso.
Logo à entrada, do
lado esquerdo, estavam os aviões e um pouco mais à frente, deslocado sobre o
lado direito, estava um lago onde havia um barco a motor feito de madeira,
daqueles que eu costumava ver nos filmes e nas séries que passavam na
televisão. Era o divertimento mais caro de toda a Feira e os miúdos pequenos só
podiam entrar acompanhados por um adulto, pelo que tive de esperar ainda muitos
anos até poder ter o prazer de lá ir sozinho e conduzir o barco só com uma mão…
Como é normal numa
grande Feira como aquela, os divertimentos eram imensos e não os poderei evocar
aqui todos, mas apenas alguns que recordo com maior nostalgia.
O Poço da Morte, ao
fundo do lado esquerdo, onde uma mulher muito forte e um rapaz mais novo e
magrinho, que iria jurar que se chamava Joselito, anunciavam a mais ousada e
perigosa de todas as aventuras. Era, de facto, arrepiante ver o Joselito a
andar de mota nas paredes de um profundo poço, às vezes sem mãos e outras de pé
no assento da motoreta. Ainda hoje me arrepio só de pensar no medo que, então,
me suscitavam essas visões.
O grande Carrocel do
meio da Feira (havia outros mais pequenos…), que teve o condão de me permitir
avaliar o meu próprio crescimento, à medida que ia conseguindo socar as bolas
que se encontravam lá bem no alto. Já mais crescidote, o meu grande gozo era
batê-las com força tal que elas andassem por lá às voltas durante tanto tempo
que quem viesse sentado atrás de mim não tivesse sequer a mínima hipótese de as
alcançar.
A meio da Feira,
perto dos cafés das farturas, estava instalada uma maquineta que, nos anos 60,
era uma precursora dos “vídeoclips” que chegariam em força décadas mais tarde.
Metia-se uma moedinha e escolhia-se um filme a cores, com um artista a
cantar, que depois passava num ecrã grande que lá estava instalado, bem
no alto. Quem pagasse tinha direito a ficar na primeira fila, mas todos
os restantes mirones estavam autorizados a ficar a ver mais atrás, sem qualquer
problema. A seleção não deveria ser muito variada, porque aqueles que me lembro
de lá ter visto foram sempre os mesmos: Sylvie Vartan a cantar “Si je Chante” à
beira de uma piscina, Johnny Hallyday a andar a cavalo e a cantar já não me
lembro bem o quê e um espanhol chamado Niño de Múrcia a cantar “Granada”,
enquanto se passeava por uns lagos e por uns jardins, que hoje posso imaginar
que seriam os do Alhambra. Sempre que por lá passava, se estivesse a passar um
filme não perdoava, mesmo que já o tivesse visto uma dezena de vezes…
Outra diversão
imperdível para mim era, na zona norte da Feira, mais próxima de Entrecampos,
um boneco de madeira que fazia de guarda-redes, com um buraco no meio.
Rematava-se de longe, e quem conseguisse meter a bola no buraco ganhava um
pirolito. Com o andar dos anos tornei-me um verdadeiro especialista naquilo… A
técnica era não chutar de biqueira, mas sim devagar e com a parte lateral
esquerda do pé direito, levando a bola a levantar um pouco, mas apenas o
suficiente para ela passar pelo buraco. Tinha uma taxa de sucesso elevada, e
porque não me apetecia andar a beber gasosas umas atrás das outras, às vezes
trocava esse prémio pelo direito a dar mais uns chutos…
Uma outra coisa que, se me deixassem, não perdia, era ir ver uns filmes a um edifício que ficava logo à entrada da porta principal, do lado esquerdo. Julgo que deveria ser qualquer coisa ligada à Camara Municipal, porque lá passavam curtos filmes acerca dos bairros antigos de Lisboa. O que eu mais gostava de ver era o Miradouro de Santa Luzia, e esse fascínio de ver o casario a descer por ali abaixo, com o rio ao fundo, acompanhou-me durante décadas. Hoje aquilo está apinhado de turistas e já o perdi um pouco, mas assim que tive ordem de soltura para andar a vaguear pela cidade, quantas vezes subi eu do Martin Moniz a Alfama e à Costa do Castelo só pelo prazer de me passear por essas ruelas. E, mais tarde, também namorar, claro está…
Para além do jantar
familiar, o meu Pai tinha duas rotinas na Feira de que não abdicava: uma era a
de ir à grande barraca das “panelinhas” e eu adorava aquela confusão, com o
“speaker” bem lá no alto a gritar “vai rodar, rodar, rodar as
panelinhas!”, e depois toda a gente a olhar para as senhas para ver se lhes
tinha saído alguma coisa e a deitá-las para o chão quando não tinham prémio,
que era a esmagadora maioria das situações; outra era a de, no momento da saída
da Feira, passar pelo balcão dos “furinhos” dos chocolates, perguntar se as
bolas dourada e prateada já tinha saído e, na negativa, furar o resto que havia
a furar na caixa, desde que já não faltassem assim tantos furos para ela ficar
esgotada. Regressávamos a casa com um saquinho cheio de chocolates e, com
alguma sorte, alguma coisinha me haveria de calhar…
Não falo aqui do
Comboio Fantasma porque, não sei porquê, essa viagem sempre me meteu medo até
muito tarde e eu era alvo de chacota por parte dos meus irmãos. Fugia daquilo
como Diabo da cruz, mas os sacaninhas, muitas vezes, obrigavam-me a ir à viva
força…
Eram belas essas
noites quentes de Verão na Feira Popular com toda a Família, e recordo-as com
muita saudade.
Mas quando hoje olho
para trás percebo que, para mim, o fascínio não emanava todo ele da Feira em
si. Naquelas noites de Verão, ir jantar à Feira era um momento de harmonia
familiar, uma breve pausa num quotidiano que não raras vezes tinha o meu Pai e
a minha Mãe às turras um com o outro, os meus irmãos à zaragata entre eles e
eu, pequenino, a um canto da sala a tentar passar despercebido para que ninguém
se lembrasse de embirrar comigo…
Uma ou duas vezes por
ano havia uma noite que era a “Noite do Senhor Milionário”. Tínhamos de andar a
perguntar a quem nos aparecesse à frente “O Senhor é que é o Senhor Milionário?”,
porque para quem acertasse no homem o prémio era muito atrativo. Nunca
encontrei milionário nenhum, mas o meu Pai, que era um homem com ar muito
solene que ia para a Feira de fato completo e a única tolerância que permitia
no vestuário era tirar a gravata, foi muitas vezes confrontado com essa
pergunta. Infelizmente, não era ele o Senhor Milionário…
Uma outra tradição
inesquecível da Feira Popular era o jantar da passagem de ano escolar…
Desde que ele me
levou lá pela primeira vez por ter passado no exame da 4ª classe e da Admissão,
sempre exigi que o meu Pai mantivesse essa tradição de me levar à Feira Popular
comer um frango inteiro com batatas fritas, quando eu passava de ano escolar.
Íamos quase sempre ao Restaurante Pescador, que ficava mesmo ao lado do “Café
dos Pretos” (perdão, dos africanos, como hoje seriamos obrigados a dizer…!), e
no final do jantar ele dava-me uma nota de 20 escudos para gastar onde
quisesse, o que era uma autêntica fortuna. Fiz questão que essa tradição do
jantar na Feira nunca se perdesse, até aos meus tempos da Faculdade, e só se
perdeu com a morte do meu Pai, em 1974…
À medida que os anos
passavam a Feira foi-se alastrando, a casa onde eu nasci foi deitada abaixo e
eu fui perdendo o interesse em lá ir, com exceção do tal jantar.
Até por volta dos meus 16/17 anos ainda às vezes lá ia à noite só para jogar matraquilhos com o meu amigo João Pedro, estando ele longe de imaginar que, algumas décadas depois, iria tornar-se Administrador da entidade que gíria todo aquele espaço…
Muitos anos mais
tarde passei a ir lá com as minhas filhas, com quem procurei manter a tradição
do jantar da passagem de ano escolar. Mas eram outros tempos, a facilidade de
acesso a outro tipo de diversões que elas então tinham não era comparável com a
da minha infância e eu percebia que elas não sentiam naquele espaço a mesma
magia que fora minha…
Depois disso ainda lá
fui várias vezes com o meu sogro e com o meu cunhado, de propósito para comer
ensopado de enguias num dos restaurantes que lá havia.
E foi, para mim, o canto do cisne da Feira Popular, que viria a encerrar em 2003, não mais voltando a abrir em lado nenhum, pese embora as promessas então efectuadas…
Deixei,
propositadamente, para o fim outro dos grandes prazeres de infância que eu
tinha na Feira Popular, que era o de comer algodão doce.
Era mais outro
fascínio, esse, o de sentir o cheirinho a aproximar-se, chegar à banca e ver um
senhor todo vestido de branco, com um chapéu igualmente branco na cabeça, puxar
de um pauzinho e aos poucos, como se de um verdadeiro golpe de magia se
tratasse, vermos esse pauzinho a encher-se de um algodão doce que nos parecia
saído não se sabe bem de onde, à medida que ele o girava no ar…
Com o passar dos anos foram aparecendo outras cores, mas no meu tempo o algodão era branco, muito branco. Levávamos à boca e ficávamos com os lábios e com o queixo cheios de açúcar, que depois trataríamos de lamber até onde a nossa língua chegasse. Às vezes tirávamos pedaços de algodão doce com os dedos e levávamos à boca, e lá teríamos de xupar os dedos no final, para que nada de doce se perdesse.
A verdade é que ao
algodão doce, e só a ele, fico a dever o facto de me ter passado pela cabeça
vir aqui hoje falar-vos desses meus gloriosos tempos da Feira Popular.
Porquê,
perguntar-me-ão vocês, com razão…?
No Centro Comercial
Oeiras Parque encontrei um destes dias a maquineta que aqui vos mostro, que
nunca antes tinha visto em lado nenhum. Coloca-se umas moedinhas na ranhura e a
máquina trata de tudo sozinha. Podemos escolher o formato, o sabor e não
sei mais quê…
Foi-se o cheirinho,
foi-se o tal senhor vestido de branco que fazia piruetas com o pauzinho e que
no final, com um sorriso no rosto, nos entregava o algodão na mão, foi-se a
magia… Ficou uma máquina fria e impessoal que nem sequer um sininho no
final da operação fez tocar.
As minhas duas netas
mais velhas queriam experimentar, mas eu disse-lhes que não, que mais valia
comerem pipocas no cinema…
Já desapareceram,
nesta cidade, tantas figuras da minha infância: os vendedores de jornais nas
esquinas, os engraxadores de sapatos com a caixa de madeira às costas, os
vendedores de castanhas, os fotógrafos “a la minuta” que deambulavam pelos
jardins, os “amola facas e tesouras” com a sua roda grande que funcionava a
pedal, as vendedeiras de figos (“quem quer figos, quem quer almoçar…?”),
e até os pobres deixaram de vir pedir às portas, como dantes o faziam aqueles a
quem eu abria a porta e que a si próprios se identificavam como sendo “os
pobres da sua (minha…) mãezinha”…
Mas não… Em resposta
à minha própria questão, não acredito que se tenha esfumado, de vez, a magia do
algodão doce. Iremos continuar a encontrá-la, certamente, nas centenas de
Festas de aldeia que na Primavera e no Verão assolam este país de lés a lés.
Mas a verdade é que
fiquei a magicar naquela terrível máquina do Centro Comercial e neste admirável
Mundo novo em que já vivemos, onde tudo é – garantem-nos… - exclusivamente
pensado, não em função da quantidade de dinheiro que entra no bolso de alguns
poucos, mas sim em prol do nosso próprio conforto e comodidade….
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira
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