Quando pensei nestes Sublinhados Saramaguianos não
segui nenhuma ideia, nenhum projecto , para além de pegar nos livros de José Saramago e copiar o que deixei sublinhado nos livros.
Diversas vezes não foi apenas isso, atravessei-me com
outras prosas, outras situações. Como a de hoje.
Estive ontem com o Último
Caderno de Lanzarote.
Já há uns dias falei de que a Fundação José Saramago
ainda não se concentrou na publicação da Correspondência de Saramago com o seus
pares, com os seus amigos, com os seus leitores.
Neste Último Caderno, no dia 8 de Agosto de 1998,
Saramago insiste:
«Um dia deixei consignada nestes
Cadernos a única ideia em tudo original que até aí tinha produzido (e suspeito
que desde então não consegui espremer da cabeça outra de quilate semelhante),
aquela luminosíssima ocorrência de que na publicação da completa de um escritor
deveria haver um voluyme ou mais com as cartas dos leitores.»
O que hoje aqui se recorda é uma carta de Jorge de
Sena para José Saramago, no tempo em que este exerceu nos Estúdios Cor o trabalho
de Director Editorial:
«Assis, 18/5/961
Meu caríssimo Saramago
A sua carta de 10, que levou cinco dias (!) a chegar cá, não me acusa
ainda a recepção do original de Metamorfoses, que lhe enviei. Mas, embora não
recorde ao certo a data, não há provavelmente demora ou extravio, mas apenas
desencontro.
Ontem, os jornais brasileiros noticiavam a concessão do prémio CCB à Fernanda Botelho, o que eu esperava, desde que, junto, no mesmo correio, com
aquela sua carta, me veio um recorte do D. de Lisboa (ou coisa parecida), em que havia uma longa lista indiscreta com os nomes dos
mais eminentes concorredores. Quero crer que meu cunhado e o Dionísio terão votado em mim; e que o espírito de corpo, em mistura, da Faculdade de
Letras e da velha “Távola”,
tenha, nas pessoas do David (do qual o mesmo correio me trouxe uma obrinha sobre o Teixeira Gomes, com
maviosíssima dedicatória) e do Jacinto,
votado na Botelho que, se bem me lembro, já haviam querido premiar contra o
Migueis.
Claro que os interesses da Bertrand, a que todos mais ou menos se encontram
ligados, fez o resto, já que o Simões votaria no diabo, e não no demónio em andanças …
Agradam-me, porém, duas ou três coisas: 1o – eu não concorri, mas a editorial…;
2o havia, na lista, o Régio, e outros (que eu não considero muito, mas são
“eminentes”) como o Redol, o Abelaira, o Urbano, também premiáveis; 3o – a
concessão do prémio à Botelho, notoriamente neutra ou fascistoide, mas pelo
menos autora de uma literatura castrada do ponto de vista ético-político, é
manifestamente uma “prudência”, uma subserviência, não digo à ordem
estabelecida, mas ao não incomodarem-na. Enfim, não me lamento, porque o prémio
sempre eu achei que o não ganhava; e não vos culpo: porque achei legítimo
concorrer e não me opuz. Do ponto de vista financeiro, os cincoenta contos,
para quem devia em Lisboa, ainda, mais do que isso e em requerência de
pagamento urgente, sem saber onde há-de ir buscá-lo, esses trinta (cincoenta,
não é?) contos, assim passados por diante do nariz, são um rude golpe. Do ponto
de vista da minha situação aqui também o são, porque eram – embora eu não
acredite em prémios – um acréscimo de prestígio entre os que acreditam neles;
e, para os meus inimigos, é um farto motivo de goso. Mas não cuidemos mais desta
história toda, ainda que eu fique, curiosamente, à espera dos seus comentários
póstumos. E, se não fosse poder parecer uma “chantagem” moral, eu pediria a
VV., sobre as Metamorfoses,
um adiantamento; e quem diz sobre estas diz sobre uma tradução que VV poderiam
dar (do francês) para minha Mulher fazer, que eu não tenho tempo. O que são as
traduções dela pode ver-se nos livros que traduziu (assinando Freitas
Leça): O Crime dos Justos e Adeline Venicien, do Chamson – por
exemplo (Livros do Brasil), – e também Le Grand Ecart, do Cocteau, e O Ouro, do Cendrars, cujas traduções acho, com serem
difíceis, perfeitas. E Os Nossos
avós Gauleses (Portugália) – cujas provas, no nosso mútuo acordo,
eu li, como ela lê as daquilo que eu publico.
Gostei muitíssimo da sua carta (e obrigado pela diligência junto desse
imarcessível Amaro),
das melhores que tenho consoladamente recebido de V. Como sempre são aquela
discreta amizade, uma desencantada e sã amargura, o humor de quem sabe que o
riso nem todos o merecem; e, por trás de tudo, um bom senso e um equilíbrio que
lhe invejo sinceramente, quando os meus me custam (e a V. também, quem sabe)
olímpicos, tanto ranger de dentes… Quanto à imodéstia, meu caro, eu sempre
achei, e acho, a modéstia a menos legítima das virtudes.
Se eu for, como pretendo, e insisto, para Araraquara (apesar da “côrte”
contraditória e interesseira que parece esboçar-se aqui, e foi ao ponto de o
meu Director rebaixar-se a pedir-me para vir jantar a minha casa, aonde não o
convidáramos mais, para conversar comigo, o que será na próxima semana), não me
parece que as coisas possam repetir-se, além do normal que V. tão bem descreve.
Eu sou, humanamente, a mais desencantada das pessoas (quase sempre, é certo,
sem a sã amargura
acima referida) – e não impunemente se é demitido aos 18 anos do mais alto
sonho da sua vida,
já descrente então da vida de família, para percorrer depois os submundos da
miséria, e ter sido, durante anos, tropa, funcionário público, político, homem
de letras, na aquisição de uma experiência que me dará contos e poemas até ao
fim da vida. A cátedra e, além da cátedra, a ilusão de renovação pedagógica
autêntica que era Assis, foram, suponho eu, uma última metamorfose minha, em
que era natural que eu entrasse impante e acreditando. Ter um “status”
universitário e uma posição preponderante nesse outro mundo – eis sonhos que eu
não realizara ainda. Naturais, pois, a ilusão e a desilusão, que não poderão
repetir-se já para Araraquara nenhuma. Aí, como nas mais cátedras que eu venha
a aquecer ou não, terei os desgostos e as arrelias que temos em tudo, maiores
ou menores. Mas, como sou incorrigível no afecto desinteressado com que me
dedico a tudo (e 15 anos de funcionalismo não puderam corrigir-me), é possível que eu, no fundo de ingenuidades que me
salva do tanto de horrível (e também de bom) que a vida tem me dado, ainda
venha a ter, mais que arrelias, dores. Neste momento, meu caro, desconfiado com
o longo silêncio do Conselho Universitário do Rio ,
eu já espero, naquela divisão entre indignação reservada e resignação risonha,
que é a minha, eu já espero mais uma derrota: a de encalhar, num recife
burocrático qualquer, o meu processo de doutoramento. Consolo-me, já pensando
que, afinal, as derrotas, como a rude franqueza com que tenho incansavelmente
denunciado tantas pessoas e coisas (aqueles pavões e perus, de que V. fala),
cortando-me acessos e integrações “corporativas”, pondo-me à margem, me libertam, na medida em que
me livram de silêncios, de concessões tácitas, de arregimentações quaisquer.
Sempre assim foi. A esse último respeito, embora às vezes sonhe com o mundo a
meus pés, nunca tive ilusões impróprias: desde que me conheci (e levei algum
tempo, porque tinha muito que conhecer), sempre soube que sou daqueles que os
Arcanjos da Estrada (que não é metáfora do Pessoa, mas termo das iniciações)
têm por obrigação deixar em pelota. E não podem os ditos cujos queixar-se de
que eu não tenha, às vezes com precipitada generosidade, facilitado, e
justificado até, o trabalho deles.
A minha produção de contos – o que, há tantos anos, aguardava, dentro
de mim, tempo que a
poesia nunca me requereu – prossegue num ritmo exaustivo. Acabei ante-ontem um,
muito longo, que creio, pela amplidão, a complexidade, a violência, das coisas
melhores que já escrevi .
Mas também nisso flutuo numa libertação total que, neste por exemplo, deixa a
perder de vista, mero exercício, Os
Amantes, no que se refere à descrição e análise da experiência sexual.
Escrevo-os como para um mundo ideal onde fosse possível publicar tudo. Além
de Os Amantes e
de Um Conto Brevíssimo (uma
pequena brincadeira séria que vai sair no Estado de São Paulo) tenho já mais
cinco contos mais ou menos longos que dariam um volume. Tecnicamente, e o que
não é possível ainda, Os Amantes e Um C.B. pertencem a uma reedição das Andanças.
Por isso mesmo, de Os Amantes tirei
cópias “mimeografadas” para distribuição restrita às pessoas que receberam
oferta do volume (claro que lhe vou mandar uma). Os outros contos, com mais
dois ou três, serão um volume terrífico, em que a “pátria”, o Exército, a
Armada, a Justiça, a Moral, etc. etc. ouvirão o que nunca ouviram. É possível
que eu tire, para já e para amostra, cópia de um deles, que lhe mandarei
também. Esse volume será, não sei se lhe disse, Os Grão-Capitães. Com ele farei o seguinte: tentarei publicá-lo
aqui, o que pode talvez conseguir-se, embora me desagrade, pelo escândalo
político e “moral”. Em jornais e revistas… as dimensões e os “contextos” são
proibitivos. Mas, em qualquer caso, reservarei os direitos de uma edição vossa, a publicar tão logo seja
possível… Para tanto, oportunamente, receberão organizado um original. Tudo
isto sem prejuízo de um volume que venha – se esta fornalha de ficção se
demorar acesa – a coligir-se de contos publicáveis aí.
Recebi de Nova York e do Migueis, a Escola do Paraiso e o Passageiro. Este li e achei fraco; o romance não tive ainda
tempo de o ler, mas emprestei-o, por exemplo, ao Victor Ramos, que o achou uma
obra-prima. Não sei se VV mandam ao Migueis as vossas edições, eu, desorientado
entre as ofertas de tanta obra sucessiva, creio que lho não ofereci. Poderia V.
mandar-lhe, com a dedicatória que junto envio, um exemplar das Andanças? Muito obrigado, desde já.
Quanto ao Sr. Crippa,
manda-se o livro desta vez, e logo vemos se também eu devo, como o Miguéis,
cortar-lhe a coleta.
E, para a colecção de ensaios, e ainda bem que lhe agradou a ideia, cá
estou gratamente às ordens.
Esta já vai longuíssima, mas ainda quero comentar essa de eu me guardar
para o regresso… Será que eu regressarei alguma vez? Sem dúvida que, aqui entre
nós, o Brasil, com todas as suas vantagens, é pior que Portugal, com todos os
seus defeitos. Quando e se as coisas mudarem, as saudades que tenho da minha
casa e dos meus amigos (e também o patriotismo de lágrima ao canto do olho)
funcionarão activamente. Mas, meu caro, dentro das premissas que V. lucidamente
expôs, de as cátedras e os lugares serem para os outros (que terão sobre mim a
vantagem da minha ausência), com que hei-de dar de comer aos meus filhos? Muito
provavelmente, eles voltarão, e eu gostaria que voltassem… Mas V. vê-me, a mim,
depois destas aventuras catedralícias, voltado a engenheiro de 3ª da Junta
Autónoma das Estradas? Com, para mais, uma viagem vertiginosa a quase-ministro
?…
E, no Portugal que se avizinha, mesmo que eu fosse um glorioso mixto de Victor
Hugo e Balzac, ninguém vai poder viver das letras… – que, aliás, não viveram
delas. Talvez eu acabe na China.
Dê as minhas melhores lembranças ao Canhão e ao Correia.
Mande-me notícias do Nataniel.
E receba o grande, saudoso e grato abraço do seu muito amigo
Jorge de Sena
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