VILA BERTA
Da minha
infância guardo alguns fins-de-semana, alguns dias das férias do Carnaval, da
Páscoa, do Natal que passava em casa da minha avó paterna, umas águas-furtadas
no nº 16 da Rua Senhora do Monte, o casario da Graça, uma vista esplendorosa
para o Tejo, cheio de fragatas, num vai-vem-rio-acima-rio-abaixo. de navios a
descarregarem cereais a granel, a outra margem com as altas chaminés do
Barreiro, desprendendo fumos.
Durante o
dia, percorria as ruas da Graça, desde o jardim junto à Igreja, jardim que hoje
se chama de Sophia Mello Breyner Andresen, até Sapadores, nunca perdido
nos caminhos das ruas da velha Graça.
O regresso a casa da minha avó, mas antes ficar um bom pedaço de tempo no miradouro da Senhora do Monte, deslumbrante vista sobre Lisboa.
Walter Benjamim diz que para conhecer toda a melancolia de uma cidade, é preciso ter sido lá criança.
E havia a
Vila Sousa, também a Vila Berta.
Mas, falando-se da Vila Berta, nada como ceder o espaço a mestre José Cardoso Pires no seu Livrode Bordo:
«Vila Berta.
Surge como uma rua fechada por um prédio
com pinturas de azulejo sobre um túnel de passagem para a cidade envolvente.
Dum lado e doutro casas bordadas de flores - e silêncio. Uma paz súbita, quase
secreta. Uma intimidade que se sente já antiga.
No gosto e na construção Vila Berta não
revela qualquer romantismo de burguesia provinciana. Também não usa de
maneirismos e menos ainda de simetrias imediatas para resultar no bem composto.
Pelo contrário, a fazer face às casas singelas dum dos lados da rua,
projectam-se, do outro, arrojadas varandas de ferro, lançadas como pontões, e o
admirável é que duma confrontação como esta resulta uma harmonia de encantar.
Fidelidade à época e a um gosto pressentido, será isso? As colunas e os remates
de remate lembram a escola de Eiffel e os desenhos de azulejo têm o colorido do
despontar do século. E as flores?
Flores, na primavera e no verão a Vila
Berta cobre-se delas. Rosas de grade e janela, rosas loucas, trepadeiras. Rosas
e plantas de improviso em manchas de imaginação. Ver como eu lá vi, exposto num
pontão deserto, um lavatório de bacia de porcelana a transbordar de chorões em
chaga viva, é deparar com uma escultura de vanguarda num cenário fora do tempo.
Cenário? Cenário, digo bem. Esta Vila, este pátio, tem qualquer coisa de palco
aberto, basta olhar. Dum lado, varandas voltadas para a cena, em fundo a fachada
dum prédio com os seus ornatos coloridos e o túnel de acesso à cidade.
Será por essa entrada que, numa noite de
verão, alguém verá aparecer o Cavaleiro da Rosa inundado de luar. Dirá que o
viu quedar-se a meio do pátio, empunhando bem alto a flor que o anunciava e
rodeado de silêncio.»
(Texto publicado em 17 de Abril de 2019)
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