O jornalista brasileiro
Raphael Tsavkko Garcia é de opinião que a ingerência estrangeira no, ainda interno, conflito na Síria, só contribui para torná-lo ainda pior.
Esta é uma visão que foge à normalidade do que, por aqui, vamos lendo nos jornais, nos blogues, vendo nas televisões.
Escrevi ainda em janeiro um artigo para este Brasil de Fato sobre a situação da revolta Síria que, hoje, se encaminha para a guerra civil. Pouco mudou em termos de cenário e de participantes, mas a percepção popular sobre os eventos parece ter mudado. E para pior.
A mídia comercial insiste em retratar os insurgentes sírios como um grupo homogêneo de lutadores pela liberdade, ao passo que Assad e toda a “situação” síria, pró-governamental é mostrada como sanguinária e apenas interessada no poder. Esta visão é datada e carregada de interesses.
Os opositores de Assad são vários e nem de longe unificados. Pequenas facções divididas não apenas em cores religiosas, mas também divididas em tribos e clãs e com os mais diversos interesses. A franca maioria dos insurgentes é da maioria sunita, que é marginalizada por Assad, um alauíta, mas também é possível encontrar alguns poucos cristãos junto a eles. Há grupos laicos e militantes islâmicos, grupos com cristãos e grupos anticristãos, além de grupos financiados pelos EUA, outros vindo do Líbano e grupos independentes, enfim, uma salada indigesta sob todos os pontos de vista.
Ao lado do governo luta não apenas o exército, mas a milícia Shabbiha, cuja influência governamental é incerta, e outros grupos menores, especialmente cristãos e drusos.
Os EUA, por sua vez, tem dificuldade em conseguir organizar e armar a oposição – fragmentada -, ao passo que Israel teme que o regime que venha a surgir pós-Assad seja ainda pior e mais ferrenhamente opositor. A Síria se assemelha à Líbia, um país com relativa estabilidade e bons índices sociais, relativamente laicos e com mulheres com mais liberdade que os vizinhos, mas dividido em clãs e tribos, ainda que controladas.
Com a ação dos EUA e aliados para desestabilizar o país – aliado com um princípio legítimo de revolta – as fraturas sociais começam a aparecer e uma guerra civil torna-se inevitável. Se por um lado há tanques e aviões de Assad realizando ataques às regiões controladas pelos vários grupos rebeldes, por outro as principais atrocidades são cometidas por grupos governistas e não pelo exército. Se Assad é o responsável direto, porém, pelas ações destes grupos é algo que não passa de especulação.
É preciso considerar que as minorias drusas, xiitas, cristãs e alauítas temem um regime islâmico sunita não apenas pelo caráter religioso, mas também pela possível vingança que este grupo majoritário organizaria contra minorias que passaram décadas senão no poder, próximos a ele.
O exército sírio é povoado por cristãos e alauítas e motivo de ressentimento por parte da maioria sunita. A resposta desta maioria dominada pode ser um banho de sangue e a limpeza étnica.
Uma saída “iemenita”, como também aventam altos oficiais dos EUA não seria simples. Em outras palavras, um acordo para que Assad deixasse o poder, como fez o presidente/ditador do Iêmen, Saleh, poderia acirrar ainda mais os ânimos de um conflito que, diferentemente do Iêmen, não é apenas tribal e pelo fim de uma ditadura, mas também sectário, religioso. As minorias que hoje apoiam Assad poderiam revidar ainda com mais força a insurgência sunita devido à derrota e ao pânico de serem dizimados.
Da mesma forma, a saída de Saleh do poder não veio acompanhada do fim dos conflitos separatistas no sul do Iêmen ou dos conflitos tribais no norte, assim como a ação da Al Qaeda local, como bem lembrou o jornalista Gustavo Chacra em artigo recente.
É preciso ainda ter em mente também o efeito que o conflito sírio vem causando no Líbano, que pode mergulhar novamente no caos caso o Hezbollah – financiado pela síria – e grupos próximos, como os cristãos de Michel Aoun ou os sunitas do Amal, resolvam intervir ou mesmo passem a repetir o conflito no país vizinho em seu próprio quintal.
Novamente, não há como negar que Assad ou elementos próximos ao regime vem cometendo atrocidades, mas estas também são cometidas pelos insurgentes, mas apenas não encontram eco semelhante na mídia comercial. Michel Chossudovsky, por exemplo, publicou recentemente artigo do jornalista russo independente Marat Musin em que ele denunciava o já famoso Massacre de Houla como resultado da ação do Exército de Libertação Sírio, ou seja, dos rebeldes que teriam massacrado famílias leais a Assad.
Não é possível corroborar tais informações, da mesma forma que é impossível provar categoricamente que a ação tenha sido obra do exército de Assad ou da milícia Shabbiha, mas o caso serve para ilustrar o jogo de propaganda e contrapropaganda que esconde o que efetivamente acontece no país.
Outro aspecto importante do conflito – e que é fruto do processo de desinformação midiático de ambos os lados - é a guerra particular travada entre a Rússia e os EUA por zonas de influência. A Rússia vê na Síria – assim como no Irã – bastiões de resistência de sua influência no Oriente Médio, ao passo que boa parte dos vizinhos estão sob esfera americana – alguns depois da quase destruição via intervenção dos EUA.
Afeganistão, Iraque, Israel, Arábia Saudita e demais países do Golfo são um entrave aos interesses russos e a queda do regime sírio imporia uma nova derrota à diplomacia deste país.
A defesa tenaz de Serguei Lavrov, ministro das relações exteriores da Rússia, ao regime sírio se explica por estes interesses e, também, mas em menor parte, pela dúvida que continua pairando sobre as reais intenções dos insurgentes.
A Líbia é um excelente paralelo, onde, depois de uma intervenção por parte dos EUA e aliados europeus, mergulhou no caos, em disputas de facções rivais divididas em tribos e clãs, e não dá mostras de se recuperar brevemente. Uma intervenção armada, como querem os EUA, poderia pulverizar ainda mais o conflito, ampliando o número de grupos lutando pelo poder e ampliar os massacres. Apesar da grande mídia se limitar a denunciar massacres cometidos ou supostamente cometidos pelo governo e seus aliados – inclusive com fotos falsas de corpos e através de denúncias com pouca credibilidade – massacres vem ocorrendo também contra grupos pró-governo, vitimando crianças, mulheres e não combatentes.
A autoria dos massacres é, por vez, de difícil identificação, sobrando para a propaganda midiática de um ou outro lado fazer seu trabalho.
Não resta dúvida de que a situação é complicada, cuja resolução não está apenas longe, mas ainda não parece possível. A certeza, porém, é que a pressão dos EUA e aliados sobre o governo junto a uma campanha difamatória midiática e o financiamento que chega até à doação de armamento à oposição apenas contribui para o acirramento que periga chegar até Damasco e tornar-se de vez uma sangrenta guerra civil. Em outras palavras, a ingerência estrangeira em um conflito – ainda – interno da Síria apenas contribui para torná-lo ainda pior.