Devíamos cultivar a delicadeza como quem cultiva gladíolos. Dar prioridade aos velhos, afagar o cabelo das crianças e sorrir sempre aos que se levantam cedo. Devíamos tratar dos bichos com cuidado idêntico ao que pomos na preparação do chá – e devíamos preparar o chá com a lentidão das gueixas.
Amantes corteses, caso se mostrasse absolutamente necessário, cortaríamos os
pulsos com asseio.
Devíamos reaprender a sophia grega, subir sem fôlego ao Tibete e sentir de novo os pulmões explodir. Devíamos ser heróis, santos e Homens Azuis. Pornográficos e exemplares, como Uriel da Costa: estendido no chão à entrada do Templo, para só depois se suicidar com parcimónia.
Devíamos conhecer de cor uns quantos versos. Comunicar por gestos como os surdos-mudos e os observadores de baleias. Esperar Godot sabendo que não vem: "Que fez algum poeta por este senhor?" Fecundar a matéria viva como Joseph Wayne fecundou a árvore. Espantarmo-nos com a música e dançar dionisicamente. Recusar dicotomias e os ângulos rectos: todo o espaço é curvo. Negar deus caso até exista e acolhê-lo às vezes “à noite, no escuro”.
Devíamos ser telúricos nos anos bissextos e prudentes nos dias feriados (assim como assim, são cada vez menos); silenciosos como um eremita, orgiásticos como Teresa D’Ávila e conhecer de cor uns quantos versos: “A poesia vai acabar, os poetas/ vão ser colocados em lugares mais úteis./ Por exemplo, observadores de pássaros/ (enquanto os pássaros não acabarem.)”
Só depois, então, cumpridos todos os requisitos, “pôr um cinturão de bombas” e abraçar o corpo como uma herança indígena. Sobretudo, conhecer de cor uns quantos versos: “Ainda não é o princípio nem o fim do mundo, calma é apenas um pouco tarde”.
Ana Leonardo Lourenço em Meditação na Pastelaria.
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