segunda-feira, 9 de outubro de 2017

OLHAR AS CAPAS


Mortos Sem Sepultura

Jean-Paul Sartre
Tradução: Francisco da Conceição
Capa: Alves Martins
Editorial Presença, Lisboa, Março de 1961

Sorrier – A garota da quinta. Ouvia-a gritar, enquanto eles os traziam para aqui. O fogo já chegava à escada.
Lucie – A pequena da quinta? Não precisavas de nos dizeres.
Sorbier – Muitos outros morreram. Mulheres e crianças. Mas eu não lhe ouvia a agonia. Ao passo que a miúda, ainda aparece que a oiço gritar. Não podia guardar só para mim esses gritos.
Lucie – Ela tinha treze anos. Foi por nossa causa que morreu.
Sorbier – Foi por nossa causa que todos morreram.
Canoris – Vês que valia mais ficar calado.
François – E então? Já não voltamos a combater. Daqui a pouco, és capaz de chegar à conclusão de que tiveram sorte.
Sorbier – Eles não aceitaram morrer.
François – E eu aceitei? A culpa não é nossa, se a missão falhou.
Sorbier – Sim. A culpa é nossa.
François – Limitámo-nos a cumprir ordens.
Sorbier – É certo.
François – Disseram-nos: «Vão lá acima e tomem a povoação». E nós observámos-lhe: «Isso é idiota; dentro de vinte e quatro horas, os alemães estarão prevenidos». E a resposta deles foi: «Vão lá mesmo assim e tomem-na», ao que nós ripostámos: «Está bem». E fomos. De quem é a culpa.
Sorbier – Devíamos ter vencido.
François – Não tínhamos possibilidades de vencer.
Sorbier – Eu sei, mas apesar de tudo devíamos tê-lo conseguido. Trezentos. Trezentos que não aceitaram a morte e que morreram por coisa nenhuma. Estão estirados no meio de pedras à torreira do sol; deve-se poder avistá-los de todas as janelas. Por nossa causa não há nessa ladeia senão milicianos mortos e pedras. É duro morrer com esses gritos nos ouvidos.

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