terça-feira, 10 de outubro de 2017

CONTINUO AO PONTAPÉ A TUDO


Carta para a «Querida e doce Maruska», escrita em S. Domingos de Rana a 8-9 de Outubro.
 A 30 de Setembro estava nas minas de carvão de Dukla.
Passe de mágica, qual Mandrake?
Ou será que, como diz Mário, numa anterior carta, Dietlinde a ex-mulher «claro que ela não vai acreditar nesta distância e te vai responder que eu continuo aí em Portugal a tentar enganar todo o mundo fingindo que não estou aí… já uma vez o disse.»
Bom, mas nós não estamos aqui pelos passes-enigmático-mandrakianos de Mário Henrique-Leiria. Estamos pelas suas palavras e maneira de sentir.
O começo da carta é sintomático:
«Por estas e por outras é que dizem que sou doido.»
Isabel estará a escrever um romance que deu a Mário para ler:

«Continuo a pensar que vais ter de refazer o teu romance, mesmo ainda antes de o acabar. Não faz mal até é bom, é uma espécie de exercício muito saudável para as pessoas que ainda não acreditam que vale a pena escrever qualquer coisa (…) como já te disse, tens de pegar logo no início a zás, dares-lhe força e economia de linguagem. Lembro-me agora, por acidente, das duas ou três primeiras linhas do meu segundo romance (hoje felizmente queimado, como o primeiro). Não quero dizer que aquilo fosse bom, nem de longe, mas é talvez uma ideia de como se arranja um início de choque. Creio que era assim:
“matei o primeiro aos dezasseis anos. Fiquei um pouco admirado, mas depois habituei-me. Afinal isto de matar não tem grandes dificuldades. É só uma questão de adaptação…”
(Talvez um dia escreve este malvado romance, agora com mais calor humano e mais um pouco de experiência vivida.)
E é assim, querida garota do sorriso bonito. Ou então, terás que entrar em lentidão mas com força emocional suficiente para segurar o leitor. Senão… lá vai o livro para o lado.
Isto é o que te posso dizer assim por carta, sem te ter ao pé de mim para te ir dizendo página a página o que gosto e o que não gosto. Mas olha, menina bonita, não acredites demais na crítica, não te fies nesses aborrecidos faladores já deformados por uma dialéctica que, no fundo, é uma frustração. Escreve o que te apetecer e depois, se entenderes, trata então da forma e do estilo. O resto, minha querida, são convenções e tretas. Se ninguém gostar, não te importes, mas se fores tu quem não gostes então sim, queima, que é a única solução… e torna a fazer porque, afinal, nós não podemos ficar quietos a ver a caravana passar. 
(…) Por que diabo tens medo, quando não se trata de escrever, mas de estar presente? Olha, Maruska, atira a cabeça contra as paredes, mas não fiques pelo meio em nada e não tentes fugir, ter um escape, com o papel e a caneta. Já reparaste que eu ainda continuo ao pontapé a tudo? Só assim compreendo a vida. Solidão, desengano, feridas a sangrar, mas o corpo é nosso e só sentindo isso tudo podemos saber que estamos vivos. E depois, amor, há sempre, mas sempre, uma esperança em qualquer coisa, em paz, em amor, em felicidade. Se não vier, se nunca vier, paciência. Pelo menos tentámos uma duas, três, dez, vinte vezes.»

Legenda: caricatura de Mário-Henrique Leiria por Vasco.

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