terça-feira, 24 de outubro de 2017

RECUSOU PERCEBER E ACEITAR


Carta escrita em S. Domingos de Rana, sem data mas com horas: «Quatro e meia da manhã, como irremediavelmente de costume». E estre começo:

«Isabel querida, doce presença de quando estou só.»

Mário narra que estivera, num serão, na casa do escritor Manuel da Fonseca: «Poker, claro. Poker e brandy. Abundância das duas coisas»

Adiante:

Isabel, é assim. Agora estou aqui e queria ver-te. Não pode ser, claro, sejamos ajuizados e muito dignos. Como não pode ser e eu sou ajuizado, escrevo-te. Não sei até que ponto te aborrecerei ou te darei prazer. Não faz mal, um dia saberei.
Isabel, querida menina sorridente tão suavemente feminina, como eu gostava agora que fosses tu quem me sorrisse quando eu fosse até lá dentro, como eu desejaria passar um braço pelos teus ombros, esfregar a cara nos teus doces cabelos, beijar-te com carinho e proteger-te com a força que sinto no meu corpo e que queria poder dar-te! Isabel, Isabel, estou agora, nesta idade e nesta solidão, a dizer-te o que até hoje tive guardado e que não pude dar a ninguém, nem sequer à Dietlinde porque ela recusou sempre perceber e aceitar. Querida, creio que em certa altura começo a ser ridículo, com isto de te querer dizer tudo o que está em mim. Olha, se assim for, afinal nada mais peço do que cumprir o vaticínio do nosso estimado Fernando Pessoa:

Todas as cartas de amor
são ridículas.
Se não fossem ridículas,
não eram cartas de amor,
ridículas.

E pronto, aqui estou eu justificado à custa do ilustre vate. Além disso, escrever uma carta de amor é bom, é um aviso de que ainda estamos vivos e continuamos a acreditar que vale a pena está-lo.

Pelo (não) ridículo das cartas de amor, fica aqui uma nota de rodapé tirada do Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago, publicado em 1984, que Mário-Henrique Leiria não leu, pois deixou-nos em Janeiro de 1980:

«… não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas, isto é o que se escreve quando já a morte vem subindo a escada, quando se torna de súbito claro que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de amor.»

Legenda: pintura de François Clouet

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