sábado, 14 de outubro de 2017

QUASE TUDO ME NÃO MERECE


Carta de Jorge de Sena, datada de 2 de Abril de 1961, Domingo de Páscoa, para Sophia  onde lhe agradece as palavras que lhe dirigiu sobre a Poesia I e Novas Andanças do Demónio:

Eu não sei, Sophia, aí quase tudo me não merece. Mas o que lhe garanto é que, aqui, também não nos merecem. Temos por cá o mesmo carreirismo torpe, cuja virtude é ser representado em descarado makebelieve. E, quase definitivamente, ninguém culturalmente se interessa por nós. Respeitam-me, estimam-me ou admiram-me, pelo que publico e faço; mas ninguém busca ler ou conhecer o que publiquei ou fiz – e isto sucede com nós todos. Se eu ler poemas seus, como já li em público, as pessoas gostam e admiram. Mas não se dão ao trabalho, sequer, de pedir-me os seus livros para a lerem como nunca me pediram os meus. Eu sou o grande escritor, aquele sujeito formidável que fez e faz conferências esplêndidas, escreve belos artigos no estado de São Paulo, é astro de congressos… e aqui a coisa acaba. Nós não existimos para eles, de resto, culturalmente, poeticamente, nada existe: tudo é literatura Os estudos de literatura brasileira enchem tudo, envenenam tudo. Acha a Sophia que nós existiríamos culturalmente, se tivéssemos a vida desenterrando e admirando as belezas supremas dos poetas portgueses de 20ª categoria, por exemplo, os ultra.rmânticos do Trovoada, do Gonçalves Crespo, qualquer texto que se imprimiu na Bahia, em 1750? É o que, equivalentemente, aqui se faz. E a vibração poética, dramática, angustiosamente metafísica, que faça o melhor dos nossos versos, como ser apreciada bem, se acab equiparad a um soneto de Bilac? A grande vantagem, aqui, é haver condições de trabalho para fazermos a nossa obra, sem nos intrometermos se não abstractamente nesta pandilha literária que, assim nos não incomoda. Mas sabe V. que, há meses, quando fui elevado a secretário-Geral do Congresso da Crítica, houve tumultos ocultos, porque sou estrangeiro?! Pois houve.

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