quarta-feira, 25 de outubro de 2017

DEPOIS, LAVAI AS MÃOS


Continuação das histórias do 25 de Abril contadas aos tetranetos:

Imaginem meus queridos tetranetos, o que seria esta liberdade aplicada à comunicação social, para a qual a Constituição tem um artigo próprio, o 38. Vieram a público, nessa época, inúmeros periódicos novos, muitos deles criados apenas para desabafar, para darem oportunidade aos seus promotores para insultarem, para ofenderem, para atacarem, para se divertirem. Só pelos nomes de alguns podereis imaginar a natureza dos seus escritos. Eram O Coiso, O Mariola, o Pé-de-Cabra, O Chato, O Risoto, O Cágado. Certa tarde, encontrava-me no Rossio, e oiço os vendedores de jornais, vindos do Terreiro do Paço, pela Rua Augusta, abraçando os molhos do periódico que tinha acabado de sair, apregoando: “A Merda! Cá está a Merda! Saiu agora A Merda!” Comprei um exemplar e arrumei-o na minha colecção de jornais da Revolução. Está aqui. Ainda um dia o podereis ler. Depois, lavem as mãos.
A liberdade de expressão também se manifestou, e exuberantemente, de um outro modo, que foi o de escrever nas paredes dos prédios, nas pedras dos passeios e até nos monumentos, e não só escrever com fazer pinturas com variadas cores. Naqueles dias andei pelas ruas a fotografar as pinturas das paredes. Conservo-as como recordação mas são de fraca qualidade.
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Mas também havia escritos que merecem, como este: “Abaixo os órgãos de cúpula.” E estoutro , de autoria de algum inimigo do Partido Comunista, então dirigido por Álvaro Cunhal: “Vamo-nos treinar no tiro ao Álvaro.” Aqui no meu bairro, por exemplo, morava, e talvez more ainda, uma menina que seria tratada por Lálá e que se apresentaria aos amigos como simpatizante de um partido de direita, de sigla CDS, dos muitos partidos que então se agitavam, ou seja Centro Democrático Social. A menina de então, que já hoje deve ser quarentona, ficou perpetuada na parede de um prédio de esquina da Rua Coelho da Rocha, onde se lê ainda em letras negras: “A Lálá é CDS”.


Além de palavras escritas também se enchiam as paredes com cartazes dos mais variados. E nada a isso escapava. Passando numa tarde pelo Terreiro do Paço esfreguei os olhos para ter a certeza do que via. As arcadas da Praça estavam literalmente forradas de cartazes. E não só. A estátua equestre de D. José, também em parte. Fotografei uma coisa e outra, e aqui vos deixo a imagem dessas fotografias.
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A liberdade oferecida de surpresa a um povo civicamente atrasado, de elevada percentagem de analfabetismo e acentuado nível de miséria, analfabetismo e miséria que o salazarismo se esforçava por manter como sinais de virtude, o que muitas vezes foi exaltado pelos deputados do Parlamento da época, iria essa, liberdade, originar situações de grande desequilíbrio social, como de facto se verificou.

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