Encontrei a
tradução (?) de «The Ghost and Mrs. Muir», da escritora irlandesa R. A. Dick,
num desses vãos de escada que vendem de tudo: livros, revistas, discos,
postais, plantas, o mais que imaginar se possa.
Entro sempre nessas lojecas,
nem que seja para olhar mas também porque há a ténue possibilidade de encontrar
uma qualquer pechincha.
Não tem indicação do autor
da tradução e pelo que li, cheguei à conclusão que não deve passar
de uma versão de um qualquer alguém com o fito de ganhar uns tostões, poucos
que fossem.
Saltam á vista as gralhas,
as discrepâncias de tradução, os nenhuns cuidados postos no produto final.
Enfim…
Mas não resisti a trazer o
livro.
Uns meros 50 cêntimos que me
possibilitaram ir à estante e fazer descer a cassette VHS para mais um visionamento. Já
lhes perdi o conto.
Também pretexto para repetir
aqui uns textos publicados em Fevereiro de 2012.
João Bénard da Costa morreu
a 21 de Maio de 2009. Tinha 74 anos.
Em 2012, se por cá andasse,
faria 77 anos e a Cinemateca,
em homenagem, exibiu um dos seus filmes da vida: OFantasma Apaixonado.
Reproduzo os textos que por
esse tempo aqui foram publicados.
Lembro-me que gostei.
Lembro-me que gostei muito. Mas nunca imaginei que ia gostar tanto e que tanto,
toda a vida, me ia lembrar desta história de amor e de morte. Aos 12-13 anos,
os grandes amores são solitários e são coisa de nós com nós, sem mais corpo do
que o próprio. Por esse lado, podia, obscuramente, como através de um espelho,
desvendar parte importante do criptograma do filme. Mas ainda era muito cedo (e
agora talvez seja muito tarde) para desvendar a parte que com essa parte se
soma. Aos doze anos, a morte é uma palavra vaga e os fantasmas brincadeiras
para sustos a pregar uns aos outros. Precisei de mais trinta anos (trinta e
dois, se contar pelos dedos) para saber que o Capitão Daniel Gregg (Rex
Harrison) não era fantasma nenhum ou era o fantasma todo. Nesse dia, preguei o
imenso poster do filme (o original) na parede que fica na frente da minha
secretária na Gulbenkian. Eu já lá não estou, o poster ainda lá está
(1) Gene Tierney (Lucy Muir) em primeiro plano, imensa e
vogante, «with that taunt in her smile». Rex Harrison, na sombra,
atrás dela, «with that haunt in his kiss». E,
no canto direito, em baixo, muito mais pequenino, George Sanders «without a
ghost of a chance». «The Flesh ... So Wéak.» «The Spirit ... So
Wiliing.» Podia ser ao contrário, mas assim sossega mais. E também por lá
se diz, na capa de um livro fechado, que «the film becames the delight of
your life.» Não sei se "delight" é a palavra mais própria,
mas muita coisa em a minha vida "becamou".
Mrs. Muir - já o disse - é Gene Tierney, nos anos de "Laura", de "Leave Her to Heaven", de "Dragonwyck", nos anos em que mais Gene Tierney foi, mulher patchuli, mulher asfódela. Mr. Muir - quem quer que tenha sido - nunca o conhecemos. Morreu antes do filme começar, de um flato ou de coisa parecida, deixando-lhe a cara e o corpo magníficos envoltos em crepes, como em crepes se envolviam as viúvas inglesas do princípio do século, tempo e país do início da acção. A adivinhar pela família com quem a deixou a viver (sogra e cunhadas), nem ela nem nós perdemos grande coisa. Mas deixou-lhe uma filha de sete anos, papel confiado à criança que então era Natalie Wood.
Para fugir dessa casa
londrina, casa de um morto, casa de mortos, decide Mrs. Muir, com enorme
escândalo da família, mudar de ares e mudar de mares, levando-se a ela, à filha
e à criada (Edna Best) para uma praia sobre o Atlântico, onde, de noite, o
vento assobiava nas frinchas de madeiras velhas e onde brenhas de ondas se
batiam contra os penhascos. Das muitas casas que lhe mostraram, nenhuma a convence.
E só quis a casa que não lhe queriam mostrar, porque - dizia -se - estava
assombrada pela alma penada do Capitão Gregg, que nela se suicidara. O fantasma
não assusta Lucy Muir. Um fantasma é o medo que a gente tem dele. E o medo do
desejo não é medo de Gene Tierney. Por isso, na casa, ama tudo o que nela ficou
do capitão: o óculo na varanda do quarto dele, o bezerro dourado que trouxe de
uma das suas muitas viagens, o retrato dele toscamente pintado, fardado de lobo
de mar, com um sorriso entre o sarcástico e o diabólico.
Uma mulher em sombra (o
luto, os véus) troca um morto por um fantasma. E se o morto a quisera enterrar
viva (em Londres) o fantasma vai e vem do mar, atravessa-lhe as janelas e
propõe-lhe a mágica dissolução, tão mágica como esse plano, entre todos mágico,
em que, na primeira noite passada na velha casa, Lucy acorda e vê o mar através
da janela, essa janela que fechara antes e que durante o sono se abriu. E,
quando já tem a certeza que ele está ali, Mrs. Muir desencadeia a aparição.
Levanta-se, vai à cozinha e risca um fósforo para acender o lume. As luzes
todas apagam-se, a trovoada e os relâmpagos começam. E é nesse momento que ela
diz: «/ know you are there» E Rex Harrison surge diante dela, malcriadissimo
como só Rex Harrison soube ser, para uma discussão nada metafísica sobre o
direito de qualquer deles à posse exclusiva da casa. Fantasma de desejo,
Harrison é também fan tasma da violação (de desejo da violação), donde a
agressividade irónica das relações entre eles.
O livro faz Mrs. Muir voltar
a Londres. O livro publica-se, não fantomaticamente. E Londres e o livro vão
trazer ao filme o terceiro «morto»: o escritorzeco Miles Fairley (George
Sanders). Há sempre um momento em que, no reino dos mortos, alguém se volta
para trás, à busca de uma imagem mais "real". Gene Tierney inicia o
seu terceiro Iove affair, com a fraca réplica do capitão, que é a presença
sedutora de George Sanders. O fantasma começa por tentar expulsá-lo. Depois,
rende-se à vida, no seu segundo "suicídio". E é enquanto ela
dorme («Ah! Comme Gene Tierney est belle quand elle dort!») que Rex
Harrison se vem despedir dela, na mais bela sequência de sempre da história de
Hollywood. «Oh, Lucia» (a voz de Harrison, a música de Herrmann) «you are
so little and so lovely» Depois, recita-lhe Keats (Ode to a
Nightingale) e fala-lhe de como teria gostado de a levar a ver o sol da
meia-noite, os fiordes da Noruega. «What you have missed, Lucia, by
being born too late to traveI the Seven Seas with me! And what I've missed too» Depois, ele que, antes, num
momento em que ela demasiado se aproximou dele, lhe dissera rudemente: «Keep
your distances, madam», inclina-se para ela num quase beijo que, de novo,
interrompe. E afasta-se para a janela e para o óculo, que nunca mais vai poder
ver o invisível. No sol da manhã seguinte, o capitão desapareceu da vida e da
casa de Lucy Muir, que só o capitão tratava por Lucia, como se ela viesse de
Lammermoor.
Mas com ele - pouco depois
dele - desaparece também George Sanders. Quando Gene Tierney o vem buscar a
terra firme (a casa dele) descobre que esse outro "sonho" ocultava a
dura realidade de uma banal mentira e de uma banal mediocridade (Sanders era
casado e a sua história uma história contada a muitas e passada com muitas).
Daí para diante não há mais homens - vivos ou mortos - na vida de Mrs. Muir.
E o tempo começa a passar
muito depressa. Depressa envelhece Mrs. Muir. Depressa a filha cresce e a filha
casa, para só então contar à mãe que ela também, em criança, vira o fantasma. E
depressa chega uma tarde (um fim de tarde) em que Mrs. Muir, de cabelos
brancos, se sente muito cansada e pede à criada um copo de leite. Não chega a
bebê-lo. O copo escorrega-lhe das mãos e Mrs. Muir morre, agasalhada, na
cadeira em frente ao mar em que sempre se sentou. A imagem desdobra-se. E os
dois fantasmas - o dele e o dela, como foram quando eram - ficam a olhar para a
velha morta. Depois, descem as escadas de mãos dadas e depois abrem a porta e
desaparecem, entre a música, no meio da névoa.
«I have been half in love with easeful Death ... / Was it a vision or a
waking dream?» (Keats).
De todas as artes, o cinema
é a mais onírica. E essa dimensão nunca existiu tanto como nos filmes
"germanizados" ou "germanizantes" feitos em Hollywood nos forties.
Joseph L. Mankiewicz (1909-1993), o realizador de “The Ghost and Mrs. Muir”
e que só agora nomeio, não era alemão, mas descendia de alemães e na Alemanha
se formou. Toda a sua vida procurou o cinema total. Apesar de muitas outras
obras -primas, nunca esteve tão perto como neste filme de que disse recordar
sobretudo «o vento, o mar e a procura de qualquer coisa de diferente». «E as
decepções que se tem»
Não há filme mais triste.
Não há filme mais bonito. Deixem-me ficar ao pé da mulher que nasceu tarde
demais para atravessar os sete mares e para ver o sol da meia-noite. Deixem-me
ficar ao pé do capitão que morreu cedo demais para a poder beijar ou para poder
deitar-se com ela. Ou deixem-me acreditar que não há cedo nem tarde e que o
único amor que existe - porque é o único em que acreditamos que existe é o
amor surreal, esse que Rex Harrison e Gene Tierney encontram no final,
quando desaparecem na névoa, atravessada a última porta.
(1) Agora,
já não está. Mas, embora empalidecido pelo sol (quem é que se lembra de pôr
fantasmas ao sol?) continua no meu gabinete. Na Cinemateca.
João Bénard da Costa
em Os Filmes da Minha Vida.
Há essa batida vulgaridade do filme a levar para a tal ilha deserta, há a
vontade de, por uma vez, dizer que, se Joseph L. Mankiewicz não tivesse
realizado outros grandes filmes, The Ghost and Mrs. Muir era
suficiente para o lugar de honra que ocupa na História do Cinema.
Trivialidades parvas mas é o
que sinto em relação a este espantoso filme, realizado em 1947, tinha eu 2
anos, que já vi um milhão de vezes – e continuo a pensar que não são
suficientes.
A primeira vez que vi o
filme, e não lembro com que idade isso aconteceu, mas já tinha passado o tempo
dos primeiros amores, fiquei marcado aos primeiros minutos do correr da fita,
assim um tanto ou quanto para não saber o que dizer, ainda hoje não
sei, nem nunca saberei.
Cada vez que dele vejo uma
referência, cada vez que o revejo, há sempre uma imensa nostalgia a mexer nos
coios da melancolia, assomos da mais bela e esplêndida
mentira, quando Lucy Muir, esplendorosa Gene Tierney, nos diz:
Pode parecer estranho, mas
por vezes há um maior sentimento de solidão na companhia de outras pessoas,
mesmo se as amarmos, do que se vivermos sós.
Numa crítica ao filme, agora não encontro o recorte mas penso ser de Rui Luís Pina, a abrir, pode ler-se:
Será possível amar-se alguém
que não existe?
Quando um dia li o que João
Bénard da Costa escrevera sobre o filme, dei comigo a descobrir coisas em que
não tinha reparado e que redundaram, para os meus sentidos, em pérolas
apaixonantes, e tenho como certo que, a cada novo visionamento, a aventura se repetirá.
O texto foi inicialmente
publicado no semanário O Independente, as crónicas do João Bénard da Costa
eram motivo único para comprar o pasquim, e mais tarde foi incluído no 2º
volume de Os Filmes da Minha Vida, cuja transcrição ocorre no post seguinte.
Nas Obras Completas de João
Bénard da Costa, em publicação pela Assírio &Alvim, no 2º volume de Crónicas:
Imagens Proféticas e Outras, o texto do filme é repetido,
mas é precedido de uma
deliciosa nota do autor .
Em 1979 João Bénard da Costa
organizou para a Fundação Calouste Gulbenkian um Ciclo sobre cinema
americano dos anos 40, e pediu a Mary Meerson, uma mulher de mil cinematecas,
Bénard diz que a ela deve o seu nome como programado, que o ajudasse
a arranjar filmes e uns cartazes para que pudesse organizar uma exposição
paralela.
Assim diz João Bénard:
Assim diz João Bénard:
«Ela enviou-me os originais de The Grapes of Wrath, de John Ford, e de The Gost
and Mrs. Muir, de Joseph L. Mankiewicz. São cartazes enormes e vinham montados
em diversos rolos, para depois se colarem e se pendurarem nas fachadas do
cinema, como nos anos 40 se usava. Mandei-os para o serviço de exposições da
Gulbenkian, que pouco habituado àquele género de materiais, os montou, sim, mas
os colou em enormes e pesadíssimos contraplacados de madeira. Quando assim os
vi, caiu-me a alma aos pés. Como é que eu ia devolver aqueles “monstros”?
Descolar os cartazes nem pensar, que ficavam em fanicos. Reenviá-los para Paris
só em camião especial e por uma fortuna. Telefonei-lhe a contar o sucedido e
ela respondeu-me, com a maior naturalidade do mundo: “Guarde-os. Pode ser que
lhe sejam úteis."»
Enquanto permaneceu na Gulbenkian,
de 1979 a 1981, os cartazes estiveram no seu gabinete, e bem à sua frente
colocou o cartaz de The Ghost and Mrs Muir da Gulbenkian.
Regresso à narrativa de João
Bénard:
«Em 91, trouxe os cartazes
para a Cinemateca. Hoje o das Vinhas da Ira anda por lá. No meu gabinete, em
frente à minha mesa só o do Fantasma. Vinte e seis anos (1979-2005) a viver com
ele e com Mrs. Muir. Muir dele é muito tempo. Mais do que umas bodas de prata.
Mas a profecia de Mary Meerson cumpriu-se. Também foi para isso que ela mos
mandou.»
Correndo o risco de dizerem
que os nossos posts são enormes, não há pachorra para os ler, publica-se
mais à frente o texto sobre o filme.
É também a homenagem a um
homem, felizmente controverso, e a quem os cinéfilos portugueses, por mim falo,
muito devem.
Mas, por favor, na
terça-feira, não percam o filme, porque é na sala escura de um cinema, que os
filmes atingem toda a grandiosidade.
Não esqueçam nunca, que a
cultura é sempre um prazer.
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