Carta, datada de 22
de Março de 1974, de Mário-Henrique Leiria para a «Querida menina»:
Recebi ontem o teu pacote medicinal. Agradeço como se seve. Chegou
mesmo na hora, tu estás sempre atenta às coisas. É espantoso! Um beijão, se
quiseres aceitar. Pode ser?
Por aqui, houve o que sabes e até muito mais. No fundo, mais uma
palhaçada , que na farda não se pode acreditar nem no boné. Contarei, se valer
a pena, quando cá vieres. Aqui não. Os meus papéis estão vigiados, tal como o
telefone, mas isso não tem importância nenhuma, até porque eles sabem que eu
sei que eles sabem…
Cá por casa há problema, mas não fiques preocupada, por favor. É assim:
Tivemos a notícia, no domingo, que o prédio foi vendido e vai ser
demolido para dar lugar a mais uma pequena colmeia de obcecados… Muito bem. O
diabo é que eu tenho duas velhas, 17 divisões, um cão, 7000 livros, toneladas
de mobília idiota, sei lá…! E além disso, pago só 550$00!!! Oh pasmo! Mas é
verdade. Nem de outra maneira podia ser, pois a média geral aqui de casa de
casa não chega a 3000$00 por mês.
Aí está. A gaita é que vou para a rua e, neste magnífico país
ultra-iflacionário, um cochicho onde não cabe nada com o máximo de quatro
assoalhadas (como se chama aqui) vai logo para entre 4000$00 e 5000$00 e já não
é mau…
Um bode dos grandes…
Vou ter de aguentar. Não sei como, mas vou. E o diabo é que isto está a
deitar as velhas abaixo… e eu sempre a fingir que tudo há-de ir pelo melhor.
Sabes, querida, o cansaço tem o seu limite. Tem mesmo.
Mário-Henrique Leiria
em Depoimentos Escritos
Sem comentários:
Enviar um comentário