quinta-feira, 28 de junho de 2018

LEVEI TEMPO A ENTENDER QUE SIM


Tudo se complicava muito porque nós (mas quais de nós?, quantos de nós?) sentíamos, como um espinho na carne, o dever de lutar pela felici­dade dos outros. Não o fazer era uma espécie de pecado. Não sabíamos viver com esse peso, essa hi­pótese sequer, na consciência. Mas lutar seria obe­decer de olhos fechados a uma orientação que (e assim me parecia mais e mais) não levaria a lado algum, à transformação dos homens certamente não? E o papel do intelectual (como o de qualquer outro militante) poderia limitar-se a subir e descer escadas com o único objectivo de subir e descer es­cadas? Não seria sua estrita obrigação (não só dele, mas sobretudo dele) esclarecer, esclarecer, esclare­cer os que só o não são, à partida, por defeituosa, criminosa organização da sociedade? Uns, como eu, pensavam (o Cochofel, o Carlos de Oliveira, o Lopes Graça, não só estes) que a militância do ar­tista deveria ser sobretudo (sobretudo, não só) no campo cultural. E que ela de modo nenhum deve­ria impedir o artista de dedicar-se ao conhecimento profundo da linguagem específica da arte e seus problemas. Que não havia arte revolucionária sem começar por ser arte. Que a desejada acção da arte junto do público, além de arte ser, exigia um míni­mo de preparação da parte deste, a incluir nas tare­fas políticas dos intelectuais. Que — princípio e fim de tudo — considerar a chamada «forma» e o chamado «conteúdo» elementos (metafisicamente) separáveis revelava, não um conceito marxista, mas um «mecanicismo pré-dialéctico», como já lhe chamara, sem que qualquer de nós o pudesse então saber, o insuspeito Mikail Bakhtine. Outros (muito mais poderosos na organização, deliberando o que pensar, desde o vértice da pirâmide a toda a base) defendiam, e com que intransigência!, precisamen­te o contrário.
 Coisas graves me pareciam que a crítica de bai­xo para cima (a inversa nunca esteve em causa), embora muito apregoada, nunca fosse possível exercê-la, que a repetição de palavras de ordem até ao atordoamento, mesmo no interior, substituísse uma cultura cientificamente indagadora, que qual­quer discordância de fundo obtivesse invariavel­mente como resposta: «terás razão, mas não é este o momento de». Quando a cultura não é nunca para amanhã, é sempre para já. O futuro o diria, o presente o está dizendo.
 Por que não se esquecem certas coisas? Ao pas­sar a simples «simpatizante» (era tudo afinal o que então queria e, a custo, consegui), um «amigo» — entre aspas a partir desse preciso instante — disse-me de olhinhos fixos e brilhantes: «Nunca mais farás nada». Mau agoiro para quem queria fa­zer tanto.
 Uma ameaça? Levei tempo a entender que sim.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Mário Dionísio. Fotografia tirada do catálogo Passageiro Clandestino

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