Tudo se complicava muito porque nós (mas quais de nós?, quantos de
nós?) sentíamos, como um espinho na carne, o dever de lutar pela felicidade
dos outros. Não o fazer era uma espécie de pecado. Não sabíamos viver com esse
peso, essa hipótese sequer, na consciência. Mas lutar seria obedecer de olhos
fechados a uma orientação que (e assim me parecia mais e mais) não levaria a
lado algum, à transformação dos homens certamente não? E o papel do intelectual
(como o de qualquer outro militante) poderia limitar-se a subir e descer
escadas com o único objectivo de subir e descer escadas? Não seria sua estrita
obrigação (não só dele, mas sobretudo dele) esclarecer, esclarecer, esclarecer
os que só o não são, à partida, por defeituosa, criminosa organização da
sociedade? Uns, como eu, pensavam (o Cochofel, o Carlos de Oliveira, o Lopes
Graça, não só estes) que a militância do artista deveria ser sobretudo
(sobretudo, não só) no campo cultural. E que ela de modo nenhum deveria
impedir o artista de dedicar-se ao conhecimento profundo da linguagem
específica da arte e seus problemas. Que não havia arte revolucionária sem
começar por ser arte. Que a desejada acção da arte junto do público, além de
arte ser, exigia um mínimo de preparação da parte deste, a incluir nas tarefas
políticas dos intelectuais. Que — princípio e fim de tudo — considerar a
chamada «forma» e o chamado «conteúdo» elementos (metafisicamente) separáveis
revelava, não um conceito marxista, mas um «mecanicismo pré-dialéctico», como
já lhe chamara, sem que qualquer de nós o pudesse então saber, o insuspeito
Mikail Bakhtine. Outros (muito mais poderosos na organização, deliberando o que
pensar, desde o vértice da pirâmide a toda a base) defendiam, e com que
intransigência!, precisamente o contrário.
Coisas graves me pareciam que a crítica de baixo para cima (a
inversa nunca esteve em causa), embora muito apregoada, nunca fosse possível
exercê-la, que a repetição de palavras de ordem até ao atordoamento, mesmo no
interior, substituísse uma cultura cientificamente indagadora, que qualquer
discordância de fundo obtivesse invariavelmente como resposta: «terás razão,
mas não é este o momento de». Quando a cultura não é nunca para amanhã, é
sempre para já. O futuro o diria, o presente o está dizendo.
Por que não se esquecem certas coisas? Ao passar a simples
«simpatizante» (era tudo afinal o que então queria e, a custo, consegui), um
«amigo» — entre aspas a partir desse preciso instante — disse-me de olhinhos
fixos e brilhantes: «Nunca mais farás nada». Mau agoiro para quem queria fazer
tanto.
Uma ameaça? Levei tempo a entender que sim.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: Mário
Dionísio. Fotografia tirada do
catálogo Passageiro Clandestino
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