sexta-feira, 15 de junho de 2018

OLHAR AS CAPAS


Gente da Sicília

Elio Vittorini
Tradução: Rosália Braamcamp
Capa: Bernardo Marques
Colecção Miniatura nº 112
Livros do Brasil, Lisboa s/d

Eu andava, aquele inverno, sacudido por abstractos furores. Não direi quais, não é isso que me proponho contar. Mas é preciso dizer que eram abstractos, não heroicos, não vivos; de qualquer forma furores, por ver perdida a espécie humana. Isto há muito tempo, e andava com a cabeça caída. Via comunicados gritantes nos jornais e baixava a cabeça; via os amigos, durante uma hora, duas horas, e estava com eles sem dizer uma palavra, baixava a cabeça; e tinha uma rapariga, uma mulher que me esperava, mas nem sequer com ela dizia palavra, também baixava a cabeça. Ia chovendo e passavam os dias, os meses, e eu tinha os sapatos rotos, a água entrava-me nos sapatos, e não havia mais nada além disto: chuva, massacres nos comunicados dos jornais, e água nos meus sapatos rotos, amigos mudos, a vida em mim como um negro sonho, e nenhuma esperança, apenas calma.
O mal era esse: a calma na não esperança. Julgar a espécie humana perdida e não sentir desejo de fazer qualquer coisa contra isso, vontade de perder-me com ela, por exemplo.
Andava agitado por abstractos furores, mas não no sangue, e estava calmo, não tinha vontade de nada. Não me importava que a minha rapariga me esperasse; estar ao pé dela ou não, ou folhear um dicionário era para mim o mesmo; e sair a ver os amigos, os outros, ou ficar em casa era também para mim o mesmo. Estava calmo; era como se nunca tivesse tido um dia de vida, nem tivesse jamais sabido o que significa ser feliz, como se nada tivesse a dizer, a afirmar, a negar, nada de meu para pôr em causa, e nada a ouvir, a dar, e nenhuma disposição de receber, e como se em todos os meus anos de existência nunca tivesse comido pão, bebido vinho ou café, nunca tivesse estado na cama com um rapariga, nunca tivesse tido filhos, nunca tivesse dado um murro em ninguém, ou não julgasse tudo isto possível, como se nunca tivesse tido uma infância na Sicília entre as piteiras e as minas de enxofre, nas montanhas; mas revolviam-se esses abstractos furores, e achava a espécie humana perdida, baixava a cabeça. E chovia: eu não dizia palavra aos amigos, e a água entrava-me nos sapatos.

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