E lá vinha, era uma festa, o dr. Avelino Cunhal, esquecido do cabelo
todo branco (em vão, com insistência, a mulher lho lembrava), feliz como um
menino, passar comigo as tardes de Domingo. Pendurava o solene chapéu no
bengaleiro e, depois de muitas cerimónias («Não vale a pena, deixe lá, não vale
a pena»), despia o seu casaco, desfazia o laço irrepreensível, chegava a
consentir em pôr um avental. Radiante. E punha-se também aplicadamente, a
misturar os pigmentos com o óleo («Já estará bem?», «Um pouco mais, mas
cuidado, não de mais»), a deitar-lhes a gota de água para fazer a emulsão, a
meter o produto em bisnagões de estanho que eu arranjava não sei onde. Tínhamos
tinta para uns tempos.
E logo os problemas da pintura se entrosaram com os da poesia, os da
ficção, os da própria teoria estética. Os da política, enfim.
O Marx é que teria razão: «Numa sociedade comunista não haverá
pintores, mas homens que, entre outras coisas, pintam». Esperanças cá para o
rapaz, que mais amador que ele não haveria. Onde estava, porém, a sociedade
comunista? Nem eu compreendia muito bem aquele «entre outras coisas». A
pintura, como tudo, exigia uma especialização cada vez maior e, a bem dizer, a
tempo inteiro. Esse o meu desespero.
Não eram sinais de paz. Lembro-me bem do sorriso dum amigo (amigo mesmo)
que, não levando muito a sério as minhas novas andanças, me ouviu um dia esta
estranha asserção: «Pintar é mais operário que escrever». A que porta batia!
«Por causa do fato-macaco?» Cáustico, o cavalheiro. «Por que não escreves então
de fato-macaco?» Eu, silêncio, todo ofendido por dentro. Há coisas em que é inútil
insistir. Um círculo de incomunicabilidade nos separa mesmo das pessoas mais ou
menos íntimas. Tentar quebrá-lo não parece aconselhável. Todos temos coisas
desconfortáveis lá no fundo. Lá no fundo convém que continuem. A confidência
tem limites. E melhor não mexer muito.
A partir dessa altura, seria um homem dividido, apesar duma unidade
subjacente, inalterada, inalterável, que só eu podia ver. Um homem incapaz de
optar entre tantas solicitações (e emboscadas...) iguais na exigência. Mas será
bom lembrar que já me desmenti em público: «Mais duma vez respondi a
entrevistadores que resolvo a minha grande dificuldade dispersiva fazendo tudo
ao mesmo tempo, um pouco de cada coisa. E disse-o com convicção, vá-se lá saber
porquê. Vejo agora que menti. Na verdade, não faço tudo sempre, era impossível.
Se escrevo poesia, por exemplo, sem que escolha quando, é só poesia que
'escrevivo'. Como havia de ser de outra maneira? Idem com a ficção. Idem com a
pintura.
«E, entretanto, absorção. Completa. Em fase
de 'escreviver' (ou de pintar), confesso que nada existe para mim além do que
me ocupa. Finjo que leio. Finjo que ouço». Por isso julgo sempre, enquanto me entrego a um tipo de
trabalho, que todos os outros acabaram para mim. Mas já se viu que assim não
é. Tenhamos esperança em embriões que esperam. Não sei como nem onde.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: desenho de Mário Dionísio
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