terça-feira, 5 de junho de 2018

TODOS TEMOS COISAS DESCONFORTÁVEIS


E lá vinha, era uma festa, o dr. Avelino Cunhal, esquecido do cabelo todo branco (em vão, com insistência, a mulher lho lembrava), feliz co­mo um menino, passar comigo as tardes de Do­mingo. Pendurava o solene chapéu no bengaleiro e, depois de muitas cerimónias («Não vale a pena, deixe lá, não vale a pena»), despia o seu casaco, desfazia o laço irrepreensível, chegava a consentir em pôr um avental. Radiante. E punha-se também aplicadamente, a misturar os pigmentos com o óleo («Já estará bem?», «Um pouco mais, mas cuidado, não de mais»), a deitar-lhes a gota de água para fa­zer a emulsão, a meter o produto em bisnagões de estanho que eu arranjava não sei onde. Tínhamos tinta para uns tempos.
E logo os problemas da pintura se entrosaram com os da poesia, os da ficção, os da própria teoria estética. Os da política, enfim.
O Marx é que teria razão: «Numa sociedade co­munista não haverá pintores, mas homens que, entre outras coisas, pintam». Esperanças cá para o rapaz, que mais amador que ele não haveria. Onde estava, porém, a sociedade comunista? Nem eu compreendia muito bem aquele «entre outras coi­sas». A pintura, como tudo, exigia uma especiali­zação cada vez maior e, a bem dizer, a tempo intei­ro. Esse o meu desespero.
Não eram sinais de paz. Lembro-me bem do sor­riso dum amigo (amigo mesmo) que, não levando muito a sério as minhas novas andanças, me ouviu um dia esta estranha asserção: «Pintar é mais ope­rário que escrever». A que porta batia! «Por causa do fato-macaco?» Cáustico, o cavalheiro. «Por que não escreves então de fato-macaco?» Eu, silêncio, todo ofendido por dentro. Há coisas em que é inú­til insistir. Um círculo de incomunicabilidade nos separa mesmo das pessoas mais ou menos íntimas. Tentar quebrá-lo não parece aconselhável. Todos temos coisas desconfortáveis lá no fundo. Lá no fundo convém que continuem. A confidência tem limites. E melhor não mexer muito.
A partir dessa altura, seria um homem dividido, apesar duma unidade subjacente, inalterada, inalte­rável, que só eu podia ver. Um homem incapaz de optar entre tantas solicitações (e emboscadas...) iguais na exigência. Mas será bom lembrar que já me desmenti em público: «Mais duma vez respon­di a entrevistadores que resolvo a minha grande di­ficuldade dispersiva fazendo tudo ao mesmo tempo, um pouco de cada coisa. E disse-o com convicção, vá-se lá saber porquê. Vejo agora que menti. Na verdade, não faço tudo sempre, era impossível. Se escrevo poesia, por exemplo, sem que escolha quando, é só poesia que 'escrevivo'. Como havia de ser de outra maneira? Idem com a ficção. Idem com a pintura.
«E, entretanto, absorção. Completa. Em fase de 'escreviver' (ou de pintar), confesso que nada exis­te para mim além do que me ocupa. Finjo que leio. Finjo que ouço». Por isso julgo sempre, en­quanto me entrego a um tipo de trabalho, que to­dos os outros acabaram para mim. Mas já se viu que assim não é. Tenhamos esperança em em­briões que esperam. Não sei como nem onde.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: desenho de Mário Dionísio

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