É na manhã de
quarta-feira que vêm trazer uma contrafé a Ricardo Reis. Levou-lha o próprio
Salvador, em mão de gerente, dada a importância do documento e a sua
proveniência, a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, entidade até agora
não mencionada por extenso, calhou assim, hoje está calhando o contrário, não é
por não se falar das coisas que elas não existem, temos aqui um bom exemplo,
parecia que nada podia haver no mundo de mais importante que estar Ricardo Reis
doente e Lídia assistindo-o, em vésperas de chegar Marcenda, e neste meio tempo
um escriturário esteve a preencher o impresso que haveria de ser trazido aqui,
sem que nenhum de nós o suspeitasse, É assim a vida, meu senhor, ninguém sabe o
que nos reserva o dia de amanhã. Em diferente sentido está reservado Salvador,
a cara, não diríamos fechada, como uma nuvem de inverno, mas perplexa, a
expressão de quem, ao verificar o balancete do mês, encontra um saldo inferior
ao que lhe fora prometido pelo simples cálculo mental, Tem aqui uma contrafé,
diz, e os olhos fixam-se no objecto dela como desconfiadamente examinariam a
coluna de parcelas, Onde está o erro, vinte e sete e cinco trinta e três,
quando deveríamos saber que não passam de trinta e dois, Uma contrafé, para
mim, com razão se espanta Ricardo Reis, pois o seu único delito, ainda assim
não costumavelmente punido por estas polícias, é receber a horas mortas uma mulher
na sua cama, se tal é crime. Mais do que o papel, em que ainda não pegou,
inquieta-o a expressão de Salvador, a mão dele que parece tremer um pouco,
Donde é que isso vem, mas ele não respondeu, certas palavras não devem ser
pronunciadas em voz alta, apenas segredadas, ou transmitidas por sinais, ou
silenciosamente lidas como agora as lê Ricardo Reis, disfarçando as maiúsculas
por serem tão ameaçadoras, polícia de vigilância e defesa do estado, Que é que
eu tenho que ver com isto, faz a pergunta com displicente alarde,
acrescenta-lhe uma adenda tranquilizadora, Há-de ser algum engano, dilo para
benefício do desconfiado Salvador, agora nesta linha ponho a minha assinatura, tomei conhecimento, no dia dois de Março lá estarei, às dez horas da manhã,
Rua António Maria Cardoso, fica aqui muito perto, primeiro sobe a Rua do
Alecrim até à esquina da igreja, depois vira à direita, ainda outra vez à
direita, adiante há um cinema, o Chiado Terrasse, do outro lado da rua está o
Teatro de S. Luís, rei de França, são bons lugares para distrair-se uma pessoa,
artes de luz e de palco, a polícia é logo a seguir, não tem nada que errar, ou
terá sido por ter errado tanto que o chamaram cá. Retirou-se o grave Salvador
para levar ao emissário e mensageiro a garantia formal de que o recado fora
entregue, e Ricardo Reis, que já se levantou da cama e repousa no sofá, lê e
torna a ler a intimação, queira comparecer para ser ouvido em declarações, mas
porquê, ó deuses, se eu nada fiz que me possa ser apontado, não devo nem empresto,
não conspiro, ainda mais me convenço de que não vale a pena conspirar depois de
ler a Conspiração, obra por Coimbra recomendada, tenho aqui a voz de Marília a
ressoar-me aos ouvidos, O papá esteve para ser preso há dois dias, ora, quando
estas coisas sucedem aos papás, que fará aos que o não são. Já todo o pessoal
do hotel sabe que o hóspede do duzentos e um, o doutor Reis, aquele que veio do
Brasil há dois meses, foi chamado à polícia, alguma ele teria feito por lá, ou
por cá, quem não queria estar na pele dele bem eu sei, ir à PVDE, vamos a ver
se o deixam sair, contudo, se fosse caso de prisão não lhe tinham mandado a
contrafé, apareciam aí e levavam-no.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
Legenda: fotografia actual do edifício que foi seda da sinistra PIDE e também PVDE.
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