Ainda não são três horas quando chega ao Alto de Santa Catarina. As
palmeiras parecem transidas pela aragem que vem do largo, mas as rígidas lanças
das palmas mal se mexem. Não consegue Ricardo Reis lembrar-se se já aqui
estavam estas árvores há dezasseis anos, quando partiu para o Brasil. O que de
certeza não estava era este grande bloco de pedra, toscamente desbastado, que
visto assim parece um mero afloramento de rocha, e afinal é monumento, o
furioso Adamastor, se neste sítio o instalaram não deve ser longe o cabo da Boa
Esperança. Lá em baixo, no rio, vogam fragatas, um rebocador arrasta atrás de
si dois batelões, os navios de guerra estão amarrados às bóias, com a proa apontada
à barra, sinal de que a maré está a encher. Ricardo Reis pisa o saibro húmido
das áleas estreitas, o barro mole, não há outros contempladores neste miratejo
se não contarmos dois velhos, sentados no mesmo banco, calados, provavelmente
conhecem-se há tanto tempo que já lhes falta de que falarem, talvez andem só a
ver quem morrerá primeiro. Friorento, levantando a gola da gabardina, Ricardo
Reis aproximou-se da grade que rodeia a primeira vertente do morro, pensar que
deste rio partiram, Que nau, que armada, que frota pode encontrar o caminho, e
para onde, pergunto eu, e qual, Ó Reis, você por aqui, está à espera de alguém,
esta voz é de Fernando Pessoa, ácida, irónica, virou-se Ricardo Reis para o
homem vestido de preto que estava a seu lado, agarrando os ferros com as mãos
brancas, não era isto que eu esperava quando para cá naveguei sobre as ondas do
mar, Espero uma pessoa, sim, Ah, mas você não está nada com boa cara, Tive uma
ponta de gripe, deu forte, passou depressa, Este sítio não é o mais conveniente
para a sua convalescença, aqui exposto aos ventos do mar largo, É só uma brisa
que vem do rio, não me incomoda, E é mulher essa pessoa que você espera, É
mulher, Bravo, vejo que você se cansou de idealidades femininas incorpóreas,
trocou a Lídia etérea por uma Lídia de encher as mãos, que eu bem a vi lá no
hotel, e agora está aqui à espera doutra dama, feito D. João nessa sua idade,
duas em tão pouco tempo, parabéns, para mil e três já não lhe falta tudo,
Obrigado, pelo que vou aprendendo os mortos ainda são piores que os velhos, se
lhes dá para falar perdem o tento na língua, Tem razão, se calhar é o desespero
de não terem dito o que queriam enquanto foi tempo de lhes aproveitar, Fico
prevenido, Não adianta estar prevenido, por mais que você fale, por mais que
todos falemos, ficará sempre uma palavrinha por dizer, Nem lhe pergunto que
palavra é essa, Faz muito bem, enquanto calamos as perguntas mantemos a ilusão
de que poderemos vir a saber as respostas, Olhe, Fernando, eu não quereria que
o visse esta pessoa por quem espero, Esteja descansado, o pior que poderá
acontecer é ela vê-lo de longe a falar sozinho, mas isso não é coisa em que se
repare, todos os apaixonados são assim, Não estou apaixonado, Pois muito o
lamento, deixe que lhe diga, o D. João ao menos era sincero, volúvel mas
sincero, você é como o deserto, nem sombra faz, Quem não tem sombra é você,
Perdão, sombra tenho, desde que o queira, não posso é olhar-me num espelho,
Agora me fez lembrar, diga-me cá, afinal sempre se mascarou de morte no entrudo,
Ó Reis, então você não viu que se tratou duma brincadeira, ia-me lá eu agora
fantasiar de morte, medievalmente, um morto é uma pessoa séria, ponderada, tem
consciência do estado a que chegou, e é discreto, detesta a nudez absoluta que
o esqueleto é, e quando aparece; ou se comporta como eu, assim, usando o
fatinho com que o vestiram, ou embrulha-se na mortalha se lhe dá para querer
assustar alguém, coisa a que eu, aliás, como homem de bom gosto e respeito que
me prezo de continuar a ser, nunca me prestaria, faça-me você essa justiça, Já
esperava que a resposta fosse essa, ou aproximada, e agora peço-lhe que se vá
embora, vem aí a pessoa que eu esperava, Aquela rapariga, Sim, Nada feia, um
pouco magrizela para o meu gosto, Não me faça rir, é a primeira vez na vida que
o ouço explicar-se a respeito de mulheres, ó sátiro oculto, ó garanhão
disfarçado, Adeus, caro Reis, até um destes dias, deixo-o a namorar a pequena,
você afinal desilude-me, amador de criadas, cortejador de donzelas, estimava-o
mais quando você via a vida à distância a que está, A vida, Fernando, está
sempre perto, Pois aí lha deixo, se é vida isso.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
Sem comentários:
Enviar um comentário