terça-feira, 12 de junho de 2018

UMA PONTA DO VÉU


Embora circunscrita ao sector cultural, assim a quis — propor, coordenar, impulsionar, ligar a zo­na clandestina à zona legal e vice-versa —, a mi­nha actividade política não deixava de crescer. Não era raro levar-me o tempo todo. Porque havia as reuniões (muitas e intermináveis), a sua prepara­ção, a distribuição da imprensa, outras tarefas. Sempre recusei ser promovido no mundo subterrâ­neo, como, depois do 25 de Abril, recusaria por duas vezes ser ministro. Eu não era, nunca fora nem seria um político. Era apenas um artista (bom ou mau é outro assunto) que circunstâncias histó­ricas precisas obrigavam a actuar politicamente. Queria-me soldado só. Mas que difícil fazer enten­der isto aos que nasceram para subir, mesmo que fiquem pelo sonho, de soldado a general!
 Erguia-me no meio da noite e olhava, angustia­do, as mesas de trabalho: a secretária, o estirador.
Não tinha tempo. O ensino, a poesia, a ficção, o ensaio, a malfadada crítica, a pintura. Tudo isto chegaria bem para encher uma vida. Ou não? So­bretudo com a demora e a minúcia que me habi­tuara a pôr em tudo e fizera de mim um animal pouco rentável. Não tinha tempo. Ninguém enten­deria isto? Ninguém entenderia que o duelo não era entre o prazer e o dever? Que era entre a vida e a morte?
 Pertenci ao Partido (escusado dizer qual) até Maio de 1952. E dele resolvi sair por não dispor do tempo indispensável para o que mais na vida me interessava (a corda quebrara) e por outras ra­zões, naturalmente. De ordem teórica, de ordem prática. Caíra, enfim, no burguesíssimo orgulho de querer ver mais e melhor do que a direcção duma organização que pensava «por milhões de cére­bros». Toma lá. Com toda a seriedade. E eu, já muito corroído pelo micróbio decadente: pensar por? nem sequer a rogo de?
Mas não era sequer o que actualmente se chama «um dissidente». Anti-stalinista, sim, e desde sempre, muito embora sem grande consciência dis­so. Ainda nem existia a palavra «stalinismo». Vinham longe o XX Congresso, as grandes revela­ções (confirmações), as primeiras tentativas de «de­gelo». Relendo documentos dessa altura, vejo, com pasmo, que respondia a certas objecções feitas em nome do pensamento de Stáline com frases do mesmíssimo Stáline... Estávamos todos muito ver­des, eu também. O que só será compreendido por quem puder reconstituir a época com a minúcia e a precisão indispensáveis.

Mário Dionísio em Autobiografia

Legenda: Apresentação do MUD, 1945. Mário Dionísio está na 1ª fila, 2º a contar da direita. Fotografia tirada do catálogo Passageiro Clandestino.

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