Embora circunscrita ao sector cultural, assim a quis — propor,
coordenar, impulsionar, ligar a zona clandestina à zona legal e vice-versa —,
a minha actividade política não deixava de crescer. Não era raro levar-me o
tempo todo. Porque havia as reuniões (muitas e intermináveis), a sua preparação,
a distribuição da imprensa, outras tarefas. Sempre recusei ser promovido no mundo
subterrâneo, como, depois do 25 de Abril, recusaria por duas vezes ser
ministro. Eu não era, nunca fora nem seria um político. Era apenas um artista
(bom ou mau é outro assunto) que circunstâncias históricas precisas obrigavam
a actuar politicamente. Queria-me soldado só. Mas que difícil fazer entender
isto aos que nasceram para subir, mesmo que fiquem pelo sonho, de soldado a
general!
Erguia-me no meio da noite e olhava, angustiado, as mesas de
trabalho: a secretária, o estirador.
Não tinha tempo. O ensino, a poesia, a ficção, o ensaio, a malfadada crítica, a pintura. Tudo isto chegaria bem para encher uma vida. Ou não? Sobretudo com a demora e a minúcia que me habituara a pôr em tudo e fizera de mim um animal pouco rentável. Não tinha tempo. Ninguém entenderia isto? Ninguém entenderia que o duelo não era entre o prazer e o dever? Que era entre a vida e a morte?
Não tinha tempo. O ensino, a poesia, a ficção, o ensaio, a malfadada crítica, a pintura. Tudo isto chegaria bem para encher uma vida. Ou não? Sobretudo com a demora e a minúcia que me habituara a pôr em tudo e fizera de mim um animal pouco rentável. Não tinha tempo. Ninguém entenderia isto? Ninguém entenderia que o duelo não era entre o prazer e o dever? Que era entre a vida e a morte?
Pertenci ao Partido (escusado dizer qual) até Maio de 1952. E
dele resolvi sair por não dispor do tempo indispensável para o que mais na vida
me interessava (a corda quebrara) e por outras razões, naturalmente. De ordem
teórica, de ordem prática. Caíra, enfim, no burguesíssimo orgulho de querer ver
mais e melhor do que a direcção duma organização que pensava «por milhões de
cérebros». Toma lá. Com toda a seriedade. E eu, já muito corroído pelo
micróbio decadente: pensar por? nem sequer a rogo de?
Mas não era sequer o que actualmente se chama «um dissidente».
Anti-stalinista, sim, e desde sempre, muito embora sem grande consciência disso.
Ainda nem existia a palavra «stalinismo». Vinham longe o XX Congresso, as
grandes revelações (confirmações), as primeiras tentativas de «degelo».
Relendo documentos dessa altura, vejo, com pasmo, que respondia a certas
objecções feitas em nome do pensamento de Stáline com frases do mesmíssimo
Stáline... Estávamos todos muito verdes, eu também. O que só será compreendido
por quem puder reconstituir a época com a minúcia e a precisão indispensáveis.
Mário Dionísio em Autobiografia
Legenda: Apresentação
do MUD, 1945. Mário Dionísio está na 1ª fila, 2º a contar da direita.
Fotografia tirada do catálogo Passageiro Clandestino.
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